quarta-feira, 23 de julho de 2025

Um deserto em pedaços

 

Algum tempo depois de publicar Viagem a um deserto interior, pela Ateliê Editorial, em 2015, fui, com meu então futuro marido, ao Deserto do Atacama, um lugar que há muito eu queria conhecer. O deserto mais seco do mundo. A minha vida se dividiu entre antes e depois dessa viagem. A conexão foi imediata. Foi como se as peças tivessem finalmente se encaixado. Eu tinha encontrado meu elemento, levada por alguém que me respeitava e que fazia parte daquilo – o Chile é sua terra natal. No deserto o ego se dissolvia no silêncio e na vastidão, como se numa meditação profunda, e se unia à paisagem. Senti que era feita de areia, pedra, terra, pó e nada, parte de tudo e de todos, e sem importância alguma. E isso foi transcendente, carnal e espiritualmente falando. Ali é preciso humildade. O deserto não é traiçoeiro, como dizemos sobre tudo aquilo que não entendemos direito – cobras, mar, vulcões, nossa própria mente. Ele apenas existe de acordo com as leis da física e não está nem aí para nós. É o que têm nos ensinado os povos originários. É preciso deixar a arrogância de lado diante da natureza. É claro que não me refiro a pessoas que confiam em um guia turístico que as deixa para trás, como vimos recentemente, mas àqueles que se julgam superiores a tudo. Os que acham que podem fazer qualquer coisa sem responder pelos seus atos podem se dar mal quando tentam subjugar também o que não conhecem. Na natureza selvagem, eles respondem pela consequência, ou melhor, pela inconsequência de seus atos. Trata-se apenas de ação e reação: o homem que decide se jogar do alto de uma montanha simplesmente não voará, por mais poderoso e incrível que se creia.

Descobri com humor a coincidência de ali existir inclusive uma parte chamada "deserto interior". Uma espécie de redundância, como o título de meu livro, pois para mim todos os desertos são interiores, íntimos. O trecho assim referido, de tempos em tempos, vejam só, desabrocha, acolhendo florações coloridas, criando um estranho cenário quando visto de longe. É claro que nem tudo são flores: a mão do homem até ali cria coisas inúteis, como uma escultura gigantesca que a mim parece desnecessária num lugar já tão grandioso. A interferência significativa do ser humano naquele lugar são as pedras simples cuidadosamente empilhadas, uma espécie de oferenda aos mortos ou aos deuses. Mas a mais importante se dá pelas mãos de mulheres que, num trabalho minucioso e infinito, buscam ossos de desaparecidos políticos durante a ditadura de Pinochet. Em seu governo, dissidentes, diferentes e inocentes tiveram seus corpos torturados, ou partes deles, jogados no mar ou no deserto. Nesse deserto, o do Atacama, de que faço parte. Essas mulheres buscam nele fragmentos ínfimos de filhos, pais, irmãos, maridos. Procuram recompor a dignidade de quem morreu de maneira torpe pelas mãos de gente que não sabe criar, mas apenas destruir. Em vez de uma estátua em formato de mão, elas ergueram juntas um monumento invisível mas pungente em defesa da memória. Foi isso que descobri por meio do amigo que, através de sua lente, dá outra vida ao que vê, Luís Villaça: ele me apresentou ao filme Nostalgia da luz, do chileno Patricio Guzmán, de quem eu conhecia apenas A batalha do Chile. Em Nostalgia da luz, cujo exemplar físico acabei ganhando de minha sogra (que por acaso se chama Luz), cria-se um contraste marcante: o deserto do Atacama abriga os maiores observatórios do mundo, por causa de seu céu límpido. Dele se analisa com nitidez o universo. As mulheres, aquelas mulheres que procuram pedaços de seus entes queridos, desejavam simbolicamente que os astrônomos, com seus instrumentos tão precisos em busca de corpos celestes, as ajudassem a encontrar corpos humanos que desapareceram, mas cujos rastros, como os das estrelas, ainda estão presentes, em forma de ossos, areia, pó e lembrança.

Minha viagem a um deserto interior continua. Meu deserto, o do Atacama, onde nem os camelos resistem, não acaba quando viramos pó. Aliás, eu não acharia mal que minhas cinzas fossem jogadas lá, ainda que, diante da minha insignificância, considero mais natural e coerente que elas sejam jogadas no lixo.


































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