A primeira obra que
li neste ano é um dos romances que serão debatidos no Clube de Leitura Mulheres
Asiáticas: Tudo o que nunca
contei, da escritora sino-americana Celeste Ng, uma das escritoras do que
se denomina diáspora. É a história de um casal inter-racial amoroso cuja filha,
Lydia, - na qual os pais depositaram todos os seus próprios anseios - morre aos
dezesseis anos. Percebi horrorizada que esta é minha história também, a
história de quem carrega um peso que, aos olhos dos outros, nem parece existir.
Procurar cumprir expectativas com as quais não se identifica, fingir ser o que
não é, estar apartada, ser rejeitada (no livro, isso significa não ter amigas,
não ser convidada para eventos relacionados à escola, não ser desejada por
nenhum garoto, ser motivo de piadinhas pelas suas feições exóticas num mundo de
brancos), ter vergonha de si mesma, nunca ser aceita de verdade por nenhum dos
lados da família (por não ser nem completamente branca nem completamente
amarela), sublimar tudo, ter vontade de sumir, de poder enfim respirar. Ninguém,
antes da morte de Lydia, consegue verbalizar e enfrentar a verdade: a
dificuldade de integração que faz com que mestiços vivam precariamente se
equilibrando sobre um fio. O exílio constante de quem, como um tipo de
aberração, não faz nunca parte de nada. A morte da garota se dá em 1977.
Mestiça que sou, se eu tivesse vivido minha adolescência nessa época, também
não sei se teria sobrevivido. Nasci em 1976 e até hoje não me recuperei das
feridas.
“Na cama de Lydia,
Marilyn abraça os joelhos feito uma menininha, tentando preencher as lacunas
entre o que James disse, o que ele pensa e o que quis dizer. ‘Sua mãe tinha
razão desde o início. Você deveria ter se casado com alguém que tivesse mais a
ver com você’. Havia tanta amargura na voz dele que Marilyn ficou sem reação.
As palavras são familiares, e ela as pronuncia em silêncio, tentando situá-las.
Então, lembra. No dia de seu casamento, no cartório: sua mãe lhe avisou sobre
seus filhos, como eles não se integrariam a lugar algum. ‘Você vai se arrepender’,
disse, como se eles fossem ser maltratados, imbecilizados e condenados, e lá
fora, na recepção, James devia ter ouvido tudo. Marilyn disse apenas: ‘Minha
mãe acha que devo me casar com alguém que tenha mais a ver comigo’, depois
jogou o assunto para longe, como poeira no chão. Mas aquelas palavras haviam
assombrado o marido. Como deviam ter se enrolado em seu coração, apertando cada
vez mais ao longo dos anos, entranhando-se na carne. Ele baixou a cabeça feito
um assassino, como se seu sangue fosse veneno, como se se arrependesse de sua
filha ter um dia existido.”
(Celeste Ng, Tudo o que nunca contei. Trad. Julia Sobral
Campos. Intrínseca)
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