sábado, 19 de julho de 2014

Carta de Gaza

Caro Mustafá,
Acabo de receber sua carta, na qual me diz ter feito todo o possível para conseguir minha permanência com você em Sacramento. Também recebi notícias do Departamento de Engenharia Civil da Universidade da Califórnia. Tenho de agradecê-lo por tudo que fez, meu amigo. Mas eu o surpreenderei antes com a estranheza quando lhe anunciar estas notícias – e não tenha dúvida sobre isso, não sinto nenhuma hesitação, na verdade estou muito certo de nunca ter visto as coisas tão claramente quanto agora. Não, meu amigo, mudei de ideia. Não o acompanharei “à terra onde há verde, água e rostos amáveis”, como você escreveu. Não, eu ficarei aqui e não sairei mais.
Estou realmente chateado que nossas vidas não continuem a seguir o mesmo curso, Mustafá. Pois quase posso ouvi-lo me lembrar de nossos votos de seguirmos juntos e do jeito com que costumávamos gritar: “Vamos ficar ricos!”. Mas não há nada que eu possa fazer, amigo. Sim, ainda me lembro do dia em que estava no salão do aeroporto do Cairo, apertando sua mão e encarando o furioso motor. Naquele momento, tudo girava no tempo com o motor de barulho ensurdecedor, e você estava à minha frente, seu rosto redondo em silêncio.
Seu rosto não tinha mudado do que costumava ser quando você crescia na região de Shajiya em Gaza, livre daquelas rugas leves. Crescíamos juntos, compreendendo-nos mutuamente, e prometíamos seguir juntos até o fim. Mas...
“Faltam quinze minutos para o avião decolar. Não olhe para o espaço assim. Escute! Você irá para o Kuwait no próximo ano e juntará dinheiro suficiente para se desarraigar de Gaza e se transferir para a Califórnia. Recomeçaremos juntos e devemos continuar...”
Naquele momento estava observando seus lábios se moverem rápido. Essa sempre foi sua maneira de falar, sem pontos ou pausas. Mas de uma maneira vaga eu sentia que você não estava completamente feliz com o voo. Não conseguia encontrar nem três boas razões para ele. Eu também sofria com a situação mas o pensamento mais claro era: por que não abandonamos esta Gaza e fugimos? Por que não fazemos isso? Sua situação tinha começado a melhorar, no entanto. O Ministro da Educação do Kuwait tinha lhe conseguido um contrato de trabalho, embora eu não o tivesse. À beira da miséria em que eu vivia, você me enviava pequenas quantias de dinheiro. Queria que eu as considerasse como empréstimo porque temia que eu ficasse ofendido. Conhecia as circunstâncias da minha família dentro e fora; sabia que meu parco salário nas escolas da UNRWA [United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees in the Near East - Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo] não era suficiente para manter minha mãe, a viúva de meu irmão e seus quatro filhos.
“Ouça com atenção. Escreva-me todos os dias... todas as horas... todos os minutos! O avião vai partir. Adeus! Ou melhor: até breve!”
Seus lábios frios roçaram minha bochecha, você desviou o rosto de mim na direção do avião e, quando novamente me olhou, pude ver suas lágrimas.
Mais tarde o Ministro da Educação do Kuwait me conseguiu um contrato de trabalho. Não é preciso repetir em detalhes como minha vida continuou lá. Sempre lhe escrevi sobre tudo. Minha vida lá era recoberta por uma cola, por uma vacuidade, como se eu fosse uma ostra pequena perdida numa solidão opressiva, vagarosamente lutando com um futuro tão escuro quanto o começo da noite, preso a uma rotina podre, num combate vomitado com o tempo. Tudo era quente e pegajoso. Havia uma incerteza em relação a toda minha vida e um desejo ardente pelo fim do mês.
No meio do ano, naquele ano, os judeus bombardearam o distrito central de Sabha e atacaram Gaza, nossa Gaza, com bombas e lança-chamas. O incidente deve ter causado alguma mudança em minha rotina, mas não havia nada para eu me importar; estava deixando para trás esta Gaza e indo para a Califórnia, onde viveria por minha própria conta, para o meu próprio eu, que havia sofrido por tanto tempo. Eu odiava Gaza e seus habitantes. Tudo na cidade amputada me fazia lembrar de telas fracassadas pintadas em cinza por um homem doente. Sim, eu enviaria uma magra quantia para ajudar minha mãe, a viúva de meu irmão e seus filhos a viver, mas me libertaria desse último vínculo também lá na verde Califórnia, longe do cheiro ruim da derrota que enchera minhas narinas por sete anos. A empatia que me atava aos filhos de meu irmão, sua mãe e à minha nunca seria suficiente para justificar minha tragédia de dar esse mergulho perpendicular. Não podia me arrastar para mais fundo do que eu já estava. Eu tinha de escapar!
Você conhece esses sentimentos, Mustafá, porque os experimentou de verdade. O que é esse laço mal definido que tínhamos com Gaza que embotou nosso entusiasmo pelo voo? Por que não analisamos a questão de modo a obter um entendimento claro das coisas? Por que não deixamos para trás essas feridas e avançamos em direção a um futuro mais promissor que nos desse uma consolação profunda? Por quê? Não sabemos exatamente.
Quando fui de férias em junho, reunindo todos meus pertences e ansiando pelo doce desembarque, o começo em direção a essas pequenas coisas que dão um belo e brilhante significado à vida, encontrei Gaza exatamente como tinha deixado, fechada como o revestimento interno de uma concha de caracol arremessada pelas ondas da praia visguenta e arenosa ao lado do matadouro. Essa Gaza estava mais apertada do que a mente de um adormecido nas dores de um terrível pesadelo, com suas ruas estreitas que tinham aquele cheiro peculiar, o cheiro da derrota e da pobreza, aquelas casas com suas sacadas salientes... esta Gaza! Mas quais são as causas obscuras que levam um homem até sua família, sua casa, suas memórias, como a primavera atrai um pequeno rebanho de cabras da montanha? Não sei. Tudo o que sei é que fui ver minha mãe em nossa casa naquela manhã. Quando cheguei, a irmã de meu falecido irmão me encontrou lá e me perguntou, chorando, se eu realizaria o desejo de sua filha ferida e lhe faria uma visita no hospital de Gaza naquela tarde. Você conhece Nádia, minha linda sobrinha de treze anos?
Naquela tarde comprei meio quilo de maçãs e parti para o hospital para visitar Nádia. Sabia que havia algo que minha mãe e minha cunhada estavam escondendo de mim, algo que suas línguas não podiam pronunciar, algo que eu não saberia dizer. Eu amava Nádia pelo costume, o mesmo que me fazia amar toda aquela geração que tinha sido conduzida à derrota e ao deslocamento que levaram a pensar que uma vida feliz era uma espécie de desvio social.
Que aconteceu naquele momento? Não sei. Entrei muito calmo no quarto branco. Crianças doentes têm algo de santidade, e mais ainda se a criança está doente por causa de feridas dolorosas e cruéis. Nádia estava deitada na cama, com as costas apoiadas num grande travesseiro sobre o qual seu cabelo se espalhava como um couro espesso. Havia um profundo silêncio nos seus olhos atentos e uma lágrima que não parava de brilhar nas profundezas de suas pupilas negras. Seu rosto estava calmo e parado mas eloquente como o rosto de um profeta torturado deve ser. Nádia ainda era uma criança, mas parecia mais que uma criança, muito mais, e mais velha do que uma criança, muito mais velha.
“Nádia!”
Eu não tinha ideia se falara aquilo ou se fora outra pessoa atrás de mim. Mas ela ergueu os olhos e eu os senti me dissolverem como a um cubo de açúcar que tivesse caído numa xícara de chá quente. Junto com seu sorriso fraco escutei sua voz.
“Tio! Você veio mesmo do Kuwait?”
Sua voz irrompeu da garganta, e ela se ergueu com ajuda das mãos e esticou seu pescoço em minha direção. Afaguei suas costas e me sentei perto dela.
“Nádia! Eu lhe trouxe presentes do Kuwait, um monte de presentes. Vou esperar até que saia da cama, bem e totalmente curada, e você irá para minha casa para que eu lhe dê os presentes. Trouxe a calça vermelha que você me pediu na carta. Verdade, eu trouxe.”
Era uma mentira, nascida de uma situação tensa, mas ao pronunciá-la senti como se falasse a verdade pela primeira vez na vida. Nádia tremeu como se tivesse levado um choque e abaixou a cabeça num silêncio terrível. Senti suas lágrimas molhando as costas de minha mão.
“Diga alguma coisa, Nádia! Você não quer a calça vermelha?”
Ela sustentou o olhar para mim e fez como se fosse falar, mas então parou, rangeu os dentes e eu escutei novamente sua voz, vinda de longe.
“Tio!”
Ela esticou as mãos, levantou a coberta com os dedos e apontou para a perna, amputada desde o alto da coxa.
Meu amigo... Que eu nunca me esqueça da perna de Nádia, amputada desde o alto da coxa. Não! E que eu nunca me esqueça da mágoa que havia esculpido seu rosto e se fundia para sempre em seus traços. Saí do hospital naquele dia, minha mão segurando com desdém silencioso o saco de maçãs que trouxera para dar à Nádia. O sol inflamado enchia as ruas com a cor do sangue. E Gaza estava completamente nova, Mustafá! Nem você nem eu nunca a vimos assim. As pedras empilhadas à entrada da região de Shajiya onde vivíamos tinham um significado e pareciam ter sido postas ali por não outro motivo que servir de explicação. Essa Gaza onde tínhamos vivido e com cujo povo bondoso tínhamos passado sete anos de derrota era algo novo. Para mim parecia um começo. Não sei por que achei que aquilo fosse um começo. Imaginei que a rua principal por onde caminhava para voltar a casa fosse apenas o começo de uma longa, longa estrada conduzindo a Safad. Tudo nessa Gaza palpitava de uma tristeza que não se limitava à lamentação. Era um desafio; mais do que isso, era algo como a reivindicação de uma perna amputada!
Saí pelas ruas de Gaza, ruas inundadas pela luz ofuscante do sol. Elas me diziam que Nádia tinha perdido a perna quando se jogou sobre seus irmãos pequenos para protegê-los das bombas e chamas que aferraram suas garras à casa. Nádia poderia ter escapado, poderia ter fugido, salvado sua perna. Mas não o fez.
Por quê?
Não, meu amigo, não irei para Sacramento, e não me arrependo. Não, e nem terminarei o que começamos na infância. Esse sentimento sombrio que sentiu ao deixar Gaza, esse pequeno sentimento deve crescer feito um gigante dentro de você. Precisa se expandir, e você deve procurá-lo para encontrar a si mesmo, aqui, entre os abomináveis escombros da derrota.
Não irei até você. Mas você pode retornar! Volte, para aprender, com a perna amputada de Nádia no alto da coxa, o que é a vida e quanto vale a existência.
Volte, meu amigo! Estamos todos esperando você.

(Ghassan Kanafani, Men in the Sun & Other Palestinian Stories. Lynne Rienner Publishers. Traduzido do árabe por Hilary Kilpatrick. Tradução do conto em inglês: Leila Guenther)


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