Um filme em que o que se move
não é a câmera, mas a história por trás dela. Uma mulher, mãe de um menino
pequeno, tentando entender o aparente suicídio de um marido que não deixou
pistas nem motivo. Esse foi meu primeiro contato, há mais de vinte anos, com o
mundo de Hirokazu Kore-Eda, ganhador de Cannes 2018, cujo Assunto de família
ainda não vi. O filme então era Maborosi, a luz da ilusão. Até hoje não sei
qual era a ilusão ali e por que ela era iluminada, mas desde então esse mundo,
tão japonês e ao mesmo tempo tão universal, passou a me interessar.
Em seguida vieram Depois da
vida, em que os mortos, à espera de seu destino numa espécie de limbo com ares
de repartição pública, têm de decidir qual a única e, portanto, mais significativa
memória, que, em forma de gravação, deverão levar para a eternidade. Ninguém
pode saber, baseado num caso real, conta a história do abandono, pela mãe, de
cinco crianças, deixadas sozinhas em casa aos cuidados do mais velho, de doze
anos, e de seu trágico destino. Still walking era sobre uma reunião de família
japonesa com seus ditos e não ditos. Em Pais e filhos, o drama de duas famílias
que têm seus filhos trocados na maternidade. Nenhum filme lembrava o anterior
em nada, nem pela temática, nem pela forma. Pode-se reconhecer um filme de
Takeshi Kitano ou de Ozu pelo enredo, luz ou enquadramento, mas não um filme de
Kore-Eda, em que a marca pessoal está além desses conceitos. Porque Kore-Eda
nunca se parece com Kore-Eda. E os filmes que tornaram para mim mais clara essa
distinção foram dois que vieram na sequência um do outro como contraposição:
Nossa irmã mais nova e Depois da tempestade.
Nossa irmã mais nova é quase uma
história de ninar, um conto de fadas, sobre três irmãs que, vivendo sozinhas
num espaço e num tempo pouco definidos, acolhem sua meia-irmã, depois da morte
do pai, depois das traições desse pai, apesar dos protestos da mãe. É um filme sobre
o profundo significado da fraternidade, que parte da família, passa pela
comunidade, até atingir a nós, espectadores, com uma lição de tamanha ternura que
ficamos desejando morar dentro dele. O Japão ou algum país pode ser assim?
Provavelmente não. Essa compaixão, esse entendimento solidário do outro nos
afeta não apenas pelo estranhamento, por beirar o irreal, mas porque acena para
uma possibilidade de existência mais humana.
Já em Depois da tempestade, a
personagem principal é uma espécie de pícaro que busca a sobrevivência por meio
de pequenos golpes. Um escritor da metrópole que perdeu a inspiração e trabalha
agora como detetive, resolvendo casos sem importância. Gasta seu salário em apostas e vive atrasando a ajuda financeira que deveria dar ao filho,
razão pela qual recebe o desprezo da ex-mulher. Mas, em todo o seu trajeto, o
que busca, lentamente e com atraso, é se tornar melhor. É o ser humano em
processo. Sou eu, somos nós, num caminho em que a viagem é tão importante
quanto à chegada ao destino final. “Ainda não sou o homem que queria ser” é a resposta que dá ao filho sobre o que gostaria de ter feito na vida.
Em O terceiro assassinato, síntese
radical desses dois percursos apontados em Nossa irmã mais nova e Depois da
tempestade, um advogado desconfia da culpa de um assassino confesso. Por que um
criminoso reincidente, em vias de ser condenado à morte, mentiria sobre sua própria inocência? Talvez porque seu
crime aponte para uma outra humanidade, feita de laços que ainda não conseguimos compreender.
Talvez porque Kore-Eda, além de
nunca se parecer com si mesmo, seja sempre mais do que Kore-Eda.
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