Nasci um
ano após a morte de meu avô Graciliano Ramos. Só fui conhecer sua obra depois
de adulto. Meu pai, o também escritor Ricardo Ramos, quis que o lêssemos (meu
irmão e eu) quando estivéssemos prontos. Entenda-se isso por quando tivéssemos
adquirido o hábito de leitura e fôssemos capazes de identificar, compreender e
gostar de um bom texto. Ele achava, com razão, que o velho Graça não era um
autor para crianças, nem fácil o suficiente para despertar o interesse de não
iniciados.
As minhas
mais remotas lembranças estão relacionadas com livros. Em casa, lia-se muito.
Os velhos cedo encontraram uma forma eficiente de nos envolver com eles,
através de um artifício inteligente. Era um tempo diferente. Pensem em cerca de
quarenta e poucos anos atrás. Na época as crianças tinham horário para tudo,
inclusive de ir para cama. Diariamente, às oito e meia da noite, quando
cantavam na televisão, ainda em branco e preto, a musiquinha dos cobertores
Parayba, não adiantava discutir. Em todas as casas, meninas e meninos de pijama
e banho tomado dirigiam-se para seus quartos.
Conformados
ou revoltados, arrastando ou batendo os chinelos, reclamando o que podiam,
após a odiada senha televisiva “Já é hora de dormir…”, levantavam-se e
recolhiam-se para o sono diário. Não esperavam mamãe mandar. Meu irmão e eu,
porém, gozávamos de um privilégio que talvez muitos de nossos amigos não
tivessem: podíamos ficar acordados uma hora a mais, desde que em nossas camas,
lendo.
Assim
iniciamos o hábito de nossas vidas. Abastecidos sistematicamente por papai,
sempre preocupado em nos alimentar com o que havia de melhor, rapidamente
ampliamos em muito esse tempo dedicado aos heróis imaginários. Aquela hora
inicial multiplicou-se em muitas. Líamos sempre que podíamos. Começamos, é claro,
com Monteiro Lobato. Reinações de Narizinho foi o primeiro livro que li.
Lembro que aos sete anos de idade pedi a minha avó Heloísa, viúva de
Graciliano, que me contasse uma história. Ela começou a ler e depois terminei
sozinho. A imagem que criei de Dona Benta, por sinal, foi guiada pelos
sentimentos que tinha em relação à Vó Lozinha, como chamávamos vovó. O mesmo
tipo de carinho, atenção aos netos, disposição para gastar tempo com eles. Eu
gostava muito também de Tia Nastácia, admirava a audácia da Emília, era um
pouco indiferente à Narizinho e queria ser igual ao Pedrinho. Achava o Visconde
meio chato.
Monteiro
Lobato durou boa parte de nossa infância. Não se lançavam contra o autor as
injustiças que se cometem hoje. Acusações ligeiras feitas a partir de frases
sem o contexto de época, bastante diferente deste nosso, do mundo em que
vivemos agora.
A nossa
formação foi bem ampla. A coleção do Tarzan, de Edgar Rice Burroughs, chegou
numa caixa, parecia um brinquedo. E realmente nos divertimos muito com aquele
homem meio-macaco. São também relacionadas a ele as primeiras lembranças que
tenho de cinema. Influenciados tanto pelas aventuras que líamos, como pelo que
víamos na tela grande, imitávamos, batendo no peito, o grito de desafio de
Johnny Weissmuller.
Júlio
Verne fez-nos olhar para o futuro, o contato inicial com um prenúncio de ficção
científica. Coração, de Edmondo de Amicis, foi o primeiro livro que me
fez chorar, tive um choque, a noção, ainda que intuitiva, de que estava frente
a frente com um texto importante. E muitos outros autores: Mark Twain, Jack
London, Viriato Correa, Daniel Defoe, Francisco Marins e Alexandre Dumas. O
romance A ilha do tesouro, de Robert Louis Stevenson, foi uma de nossas
paixões. Lembro da cara de papai quando nos entregou aquele tijolo, ele tinha a
certeza da boa escolha.
Depois
veio Moby Dick, de Herman Melville e até hoje, quando vejo o mar,
lembro-me da grande baleia branca. Uma autora pouco conhecida no Brasil
arrebatou nossos corações e mentes: Laura Ingalls Wilder. Era muito difícil
parar de ler as aventuras daquela família de colonos americanos. Nossa hora
permitida de leitura antes de apagar a luz rapidamente foi burlada. Mamãe
vinha dar boa noite, nos beijava, e retirava-se, fechando a porta do quarto.
Ficávamos um tempo em silêncio. Então acendíamos nossos abajures e
continuávamos, bem quietinhos, na casa da floresta, à beira do riacho, ou às
margens da lagoa prateada. Era comum vararmos as madrugadas. A manhã várias
vezes surpreendeu-nos trazendo o momento de irmos para a escola..
Aos
poucos sem que percebêssemos, fomos migrando para obras adultas. Apareceram
livros que mostravam o nosso idioma muito bem tratado, os nossos melhores
clássicos: Machado de Assis, José de Alencar, José Lins do Rego, Jorge Amado,
Rachel de Queiroz, Mário e Oswald de Andrade e, o óbvio, Graciliano Ramos.
Papai, de maneira didática, falava alguma coisa sobre o autor que nos iria
apresentar. Um dia ficamos sabendo que existia Ernest Hemingway. Visivelmente
admirava aquele escritor mais do que a média. Indicou-nos primeiro O velho e
o mar. Hoje, quando olho para trás, penso nos truques de Ricardo Ramos. Publicitário que foi,
imagino ter usado técnicas de propaganda para vender o produto livro aos
filhos.
O certo é
que comprávamos direitinho as indicações dele. Quando concluímos Adeus às
armas, Por quem os sinos dobram, Ilhas da corrente e Paris é uma festa, deu-se
por satisfeito. Tinha começado o ciclo americano. Havia uma certa ordem a
seguir. Conhecemos então Scott Fitzgerald e William Faulkner. E vieram os
russos Turguêniev e Dostoiévski. Guerra e paz, de Tolstói, era a
preferência maior de papai, declarada em todas as oportunidades. Mais tarde os
ingleses Charles Dickens, Jane Austen, Conan Doyle e Virginia Woolf. Ler os
franceses foi delicioso: Os Thibault, de Roger Martin du Gard, preparou
o terreno, ótimo início, completado anos depois por Zola, Flaubert, Balzac, Stendhal
e Proust. E passamos por todos os gêneros. Difícil escolher o meu livro, o de
que mais gostei. Talvez A montanha mágica, de Thomas Mann.
Hoje,
depois de percorrer incontáveis páginas, cheguei à conclusão que é fundamental
variar. Depois de uma obra difícil, um policial pode cair bem. Alternar contos
com poesia, romances e ficção científica, novelas depois de teatro, melhora o
cardápio substancialmente. Sempre leio alguma coisa antes de dormir. O hábito
vindo da infância nunca me abandonou. Quando estou muito cansado, o sono
batendo forte, pego alguma coisa mais leve. Daí a conveniência de se ter
alternativas diferentes.
A consequência
imediata de tanta leitura, na escola, foi escrever direito. Tanto meu irmão
quanto eu tirávamos boas notas. Minhas redações eram sempre elogiadas. Havia
uma professora, em especial, que ao terminar meus textos, lidos invariavelmente
em voz alta na classe, o que me deixava encabulado e infeliz, dizia: “Filho e
neto de peixe, peixinho é”. Sempre me incomodou essa frase. Pelo que guarda de
inverídico, de falso, de injusto. Ouvi a vida toda falarem em genética.
Peguei-me muitas vezes pensando sobre isso. Tenho irmãos que escrevem bem.
Minha irmã, temporã, que nasceu dez anos depois da gente, seguiu o mesmo
caminho. Tenho tios, primos e sobrinhos com textos publicados. Seria o sangue
de Graciliano tão forte assim? Decididamente não. Aceitar essa ideia seria crer
no mágico, no sobrenatural, fazer uma análise superficial sobre a realidade.
Nada se constrói sem esforço. Quando somos competentes, há sempre uma razão
concreta para isso. Ligada à força de vontade, ao estudo, ao trabalho pessoal.
Tenho
amigos que se queixam dos filhos. Falam da falta de capacidade dos seus
meninos, incapazes de dar sentido a uma frase. Pergunto então se gostam de ler.
Não gostam. A resposta está aí. Em nossa família, nascemos e vivemos em casas
rodeadas por livros. Gostamos de tudo num livro. Do formato, da textura, do
cheiro. Estantes, livrarias, sebos, bancas de revistas e bibliotecas exercem
tremendo fascínio sobre nós. Escrever bem, como já disse, é consequência.
Duvido que a carga sanguínea adiantasse alguma coisa se tivéssemos ficado longe
da leitura.
Papai não
acreditava em inspiração. Dizia que se fosse esperar a vontade chegar, não
teria escrito. Poucos vi serem tão metódicos. Diariamente, de domingo a
domingo, sentava-se para escrever. Dizia que era um trabalho como outro
qualquer. Hora para começar e terminar, disciplina, planejamento. Com ele
aprendi que é preciso estar atento ao cotidiano.
Tudo o
que vai para o papel parte de observação. Era comum vê-lo agradecer. Dizia,
sorrindo: “Obrigado, você acaba de me dar um conto”. E corria para a
máquina. Se os sons fazem parte de nossa memória, o martelar das teclas de
ferro imprimindo as palavras ficou lá gravado para sempre. Ainda hoje sou capaz
de ouvi-lo. E buscando no passado a sensação que me provocava, percebo que
variava, não havendo um padrão único. Às vezes, um ritmo constante, triunfante,
celebrando o resultado obtido, feliz. Espécie de música, os dedos de meu pai
dançando no teclado da velha Remington. E então, como se houvesse um
impedimento súbito, o barulho metálico cessava por completo. Um silêncio
pesado e triste pairava no ar. Segundos, minutos, instantes de incerteza. E o
matraquear podia recomeçar cheio de alegria, ou não. E aí, como consequência
da não aprovação do autor, a página corria rápida no rolo de impressão, era
arrancada rispidamente do equipamento, e rasgada com resignação. A busca era
retomada.
Com muita
paciência, dia após dia, vi Ricardo
Ramos atrás da precisão, da melhor maneira de dizer o que havia
para ser dito, sem nunca perder o rigor, o valor estético, o bom gosto. Essa
exigência extremada, na minha opinião, levou-o mais frequentemente ao conto do
que a outro gênero. É fácil comprovar isso. Ele mesmo tinha essa consciência: “Sou metódico no hábito de escrever.
Capricorniano típico, apesar de não crer em horóscopo, gosto de escrever
rapidamente a tarefa a que me propus, até para ficar livre dela e começar
outra. Não que o texto não seja retrabalhado. Talvez com conto isso seja mais
fácil, mais possivelmente finito, do que com romance”.
Muito de
que li de papai parecia ser releitura, como se tivesse havido um contato
anterior com aquele texto. Por dois motivos: o retrato do cotidiano muitas
vezes compartilhado; o fato de em tantas ocasiões ouvir a leitura do texto, em
voz alta, para mamãe. Opinião bastante presente, capaz de sugerir alterações e
avaliar. O autor sempre anseia por uma resposta, quer mostrar o que produziu,
precisa de público. Talvez por isso eu utilize tanto a facilidade de ter um
blog. Os comentários são quase que imediatos.
Sempre me
perguntam qual obra prefiro de Ricardo Ramos. Há nos dias de hoje uma necessidade imediata
de classificação. Fugindo um pouco dos contos, sua especialidade, tenho um
carinho especial pela novela Os caminhantes de Santa Luzia. Depois de
ler esta história várias vezes, percebi que poderia, facilmente, ser filmada.
Trabalhei um bom tempo no roteiro. Acabo de concluí-lo.
Convivi
com escritores em casa. Gostava de ficar quieto, num canto, escutando as
discussões literárias que muitas vezes aconteceram lá. Nas feijoadas de sábado
compareciam, com maior ou menor assiduidade, gente como José Paulo Paes, Osman
Lins e Julieta de Godoy Ladeira, Ignacio de Loyola Brandão, Raduan Nassar, os
irmãos Marcos Rey e Hernâni Donato, Lygia Fagundes Telles, Fábio Lucas,
Gilberto Mansur e Vivina de Assis Viana.
Entre as
várias histórias que ouvi sobre meu avô, uma sempre é comentada e está entre as
minhas preferidas. Em janeiro de 1929, então com trinta e sete anos,
Graciliano enviou ao governador de Alagoas o relatório de prestação de contas
do município de Palmeiras dos Índios, onde exercia o cargo de prefeito. Esse
texto, com muita qualidade literária, chegou às mãos do poeta e editor Augusto
Frederico Schmidt. Impressionado, procurou o autor para saber se ele tinha
outros escritos que pudessem ser publicados. O livro Caetés estava na
gaveta, aguardando oportunidade. Schmidt recebeu os originais e partiu, no
mesmo dia, para uma noitada na Lapa. Mais tarde, atarantado, percebeu haver
perdido aquela cópia. Um ano depois, Jorge Amado, o ilustrador Santa Rosa, José
Américo de Almeida, e o intelectual e militante comunista Alberto Passos
Guimarães, amigos e admiradores de Graciliano, insistiram na edição do romance,
e Schmidt encontrou-o esquecido no bolso de uma capa de chuva. Finalmente, a
publicação aconteceu, mas a fama de editor desorganizado ficou.
E então
eu estava pronto, resolvi reler Graciliano. O contato com a obra de meu avô foi
o mais diferente dos impactos com textos que eu tive. Ele dizia as coisas de
maneira tão característica que dispensava assinatura. Eu podia identificar
qualquer parágrafo lido, em qualquer lugar, isolado, como sendo dele. Aos
poucos, avançando página após página, consegui abandonar o orgulho bobo de
neto. Consegui analisá-lo como escritor, guardar distância suficiente para ler,
apenas ler. E aquele parente do qual ouvira falar a vida toda perdeu o
distanciamento e ganhou uma intimidade real. Deixou de ser o avô imaginado, o
motivo de vaidade na escola, o herói das histórias que vovó contava, o vovô
Grace. Passou a ser o escritor Graciliano Ramos, com a reverência respeitosa
devidamente guardada. Exemplo impossível e possível. A consciência de que
ninguém escreverá como ele. O ensinamento de que o texto é para ser trabalhado
e retrabalhado. Enxuto. Que as palavras não obedecem ao acaso, há sempre um
jeito melhor de se apresentar uma ideia e temos de encontrá-lo, procurá-lo à
exaustão. Escrever não é fácil, é penoso e preciso. E então percebi a
necessidade de escrever. Procuro, modestamente, seguir os conselhos que
Graciliano deu em entrevista concedida em 1948: “A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar, como ouro falso; a
palavra foi feita para dizer”.
(Ricardo Ramos Filho, “A descoberta dos livros”. Relatórios
do prefeito de Palmeira dos Índios Graciliano Ramos. Duetto Editorial)
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