A NOITE ABRE MEUS OLHOS
No sangue do filho do homem
uma parcela trémula
um silêncio demasiado precioso
para a listagem das grandes transformações
Caminhei sempre para ti sobre o mar encrespado
na constelação onde os tremoceiros estendem
rondas de aço e charcos
no seu extremo azulado
Ferrugens cintilam no mundo,
atravessei a corrente
unicamente às escuras
construí minha casa na duração
de obscuras línguas de fogo, de lianas, de liquens
A aurora para a qual todos se voltam
leva meu barco da porta entreaberta
o amor é uma noite a que se chega só
ÓSTIA
Um desses atrasos no aeroporto de Fiumicino
e eis-nos em salto desprovido por estas ruas
além do parque arqueológico
a cidade assemelha-se a um acampamento desolado
varandas cheias de caixotes e detritos
(devem ser exíguas as casas econômicas)
muros com imprecações aos de Roma
e a débil força messiânica entregue
aos ídolos do futebol
Sem darmos conta já estávamos encalhados
numa qualquer estrada secundária
junto a um matagal circundado de rede
onde um letreiro quase ao acaso
diz ter morrido
Pier Paolo Pasolini
PLÁTANOS
Depois de ter fechado tudo, abro de novo a porta
e corro cambaleante para a vazia escuridão
assusta-me a certas horas a companhia
do que não adormece
a resistência disso no nosso espaço
movido por outras forças
Mas também me ocorre acender primeiro a luz
e só depois
sentir um medo louco da casa que me acolhe
dos seus redemoinhos imperceptíveis
que julgo cada vez mais perto
como se estivesse para ser morto
às mãos do próprio Deus
Não sei bem acordar vivo destas coisas:
aproveito o ruído do entardecer e grito muito alto
deixo-te um instante só (um instante só)
para fechar os olhos que tanto ardem
ou atiro das margens folhas ao rio
para medir o tempo de uma vida
a naufragar
PONTOS LUMINOSOS
No silêncio basta um sopro e todo o tempo estremece
como se afasta cantando mais para dentro
a própria noite
Guardei para ti relâmpagos inúteis
prata feita de medidas vagas
a inclinada superfície implacável
cordas e alçapões
Do ponto mais alto do céu a 56 milhões de quilômetros
um dia me dirás
“desde a idade do gelo nunca estivemos tão próximos”
No sangue do filho do homem
uma parcela trémula
um silêncio demasiado precioso
para a listagem das grandes transformações
Caminhei sempre para ti sobre o mar encrespado
na constelação onde os tremoceiros estendem
rondas de aço e charcos
no seu extremo azulado
Ferrugens cintilam no mundo,
atravessei a corrente
unicamente às escuras
construí minha casa na duração
de obscuras línguas de fogo, de lianas, de liquens
A aurora para a qual todos se voltam
leva meu barco da porta entreaberta
o amor é uma noite a que se chega só
ÓSTIA
Um desses atrasos no aeroporto de Fiumicino
e eis-nos em salto desprovido por estas ruas
além do parque arqueológico
a cidade assemelha-se a um acampamento desolado
varandas cheias de caixotes e detritos
(devem ser exíguas as casas econômicas)
muros com imprecações aos de Roma
e a débil força messiânica entregue
aos ídolos do futebol
Sem darmos conta já estávamos encalhados
numa qualquer estrada secundária
junto a um matagal circundado de rede
onde um letreiro quase ao acaso
diz ter morrido
Pier Paolo Pasolini
PLÁTANOS
Depois de ter fechado tudo, abro de novo a porta
e corro cambaleante para a vazia escuridão
assusta-me a certas horas a companhia
do que não adormece
a resistência disso no nosso espaço
movido por outras forças
Mas também me ocorre acender primeiro a luz
e só depois
sentir um medo louco da casa que me acolhe
dos seus redemoinhos imperceptíveis
que julgo cada vez mais perto
como se estivesse para ser morto
às mãos do próprio Deus
Não sei bem acordar vivo destas coisas:
aproveito o ruído do entardecer e grito muito alto
deixo-te um instante só (um instante só)
para fechar os olhos que tanto ardem
ou atiro das margens folhas ao rio
para medir o tempo de uma vida
a naufragar
PONTOS LUMINOSOS
No silêncio basta um sopro e todo o tempo estremece
como se afasta cantando mais para dentro
a própria noite
Guardei para ti relâmpagos inúteis
prata feita de medidas vagas
a inclinada superfície implacável
cordas e alçapões
Do ponto mais alto do céu a 56 milhões de quilômetros
um dia me dirás
“desde a idade do gelo nunca estivemos tão próximos”
(José Tolentino Mendonça, A estrada branca. Lisboa, Assírio & Alvim, 2005)
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