domingo, 14 de fevereiro de 2010

Direto de Portugal VI

(Foto: Gérard Castello Lopes)




SANTO NOME

Respiro pesadamente entre as algas.
Os peixes morrem com o seu olhar louco à beira das
lajes.
Deste cais vejo que anoitece e lançam as redes os meus
homens do mar.
Irmãos do sal, consumidos de iodo, junto aos violinos.
Vem, Senhora dos Litorais, e sobre a falésia tange as
minhas cordas em sobressalto.
Murmura o meu nome, o meu santo nome entre os demais.
O destino dos cardumes é o destino de um homem, um
homem é o silêncio profundo,
o silêncio é o enigma da sua ilha.
De aromas e perigos se entrelaçam os portos.
Às vezes, pela inquietação dos mastros, passava a alegria.



PERPLEXIDADE

Perfila-se o cereal à vista dos moinhos.
As pás movem o silêncio da colina,
desarticulando os lábios de quem sobe,
debaixo do sol.
Respira-se devagar,
de frente para o horizonte, à hora exacta do
mundo.
As mós cantam o entardecer do pão.
O teu vulto segue a escuridão do corvo e
voas em silêncio,
declinando a sombra.
Como vertiginosa poeira escoa-se o centeio
entre os dedos.
As aldeias contemplam a saudade da tua
boca nas minhas folhas,
queimando-as lentamente, ao acaso dos pêndulos.
Já partiste, sem ruído, como o ar que deixa
a seara,
entregando-se ao temor das foices.
Não sei como convocar-te quando a noite
me assusta,
rodeada de incêndios.



INSULARIDADE

Uma ilha mente.
Uma ilha é um obscuro ventre de inacessível
ouro derramado,
incandescente.
Os nervos estremecem ao fundo das crateras.
O sangue corre pelas ribeiras onde enlouqueci,
na fermentação das canas,
alheio às conspirações.
Os filhos esquecem a minha arte sem doçura,
recusando o fruto.
As vinhas apodrecem e nem o sonho as
devolve.
Há um amargo caule que mergulha na
exactidão da lava,
corolas silenciosas, por florir.
É sempre tarde quando amanhece na orquídea.


EXPIAÇÃO

Quando chego
Já duas corolas vivas decoram os alpendres.
Uma haste em consumida luz respira junto
aos degraus.
Não tem valor esta mansão que do abandono fez
o seu hóspede,
a hora fúnebre.
O luto rege a obscura linhagem dos
indesejados filhos.
Todas a pressa é a de matar uma rosa alucinada e
o mal é só esse:
a contemplação dos despojos:
a garganta ferida, algumas raízes que à lama
devem o dom da expiação.
O dia é cego.
Nem o pecado resgata a desolação das planícies.






(José Agostinho Baptista, Paixão e cinzas. Lisboa, Assírio & Alvim, 1992)

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