Tenho um carro. É simples, mas é meu (ainda o estou pagando) e me permite me locomover para qualquer lugar que seja. Não que eu precise ir para muito longe. Mas a sensação de pelo menos poder ir é reconfortante. A mobilidade é um grande dom. Posso levar também. Posso levar um doente ao hospital, antes que a morte o leve. Posso ser mais rápida que a morte. Na verdade eu fiz isso há alguns dias. Levei alguém a um hospital com o meu carro. Alguém que não voltou. Eu fiquei esperando – eu passei a vida esperando – mas ele não voltou. Era para ele voltar, não havia dúvidas quanto a isso, mas não deu certo. Ele ficou e eu fui. Depois de algum tempo parada, a gente se espanta com a capacidade que ainda tem de ser móvel. E se espanta mais ainda com o caráter provisório das coisas. A vida era provisória e eu não sabia. O amor era provisório e eu não sabia. Joguei no lixo do banheiro o presente com que eu esperava aquele que não voltou, peguei algumas roupas, o notebook, o cachorro e as coisas dele – casinha, cobertor, ração, brinquedo (ele precisa de mais coisas que eu, percebi com infinita surpresa) –, pus tudo no carro e parti. Na estrada vi tudo ficando para trás numa velocidade absurda. O que eu era, o que sou, se despregou de mim como pele velha e ficou parado no mesmo lugar, enquanto a viagem prosseguia. Não preciso mais do que eu era, do que sou, constato também com infinita surpresa. Chego a algum lugar. Sei apenas que é também provisório. Depois de usar a rede via linha telefônica, sei que vou precisar de uma banda larga. Mas já me decidi: será uma internet 3g, dessas que a gente pluga no notebook, também móvel, e vai para onde quiser. Se eu voltar a ter uma casa, sei que não haverá telefone fixo. Só celular. Móvel. Minhas roupas, onde estou, continuam na mala. Abriram-me um espaço no guarda-roupa mas não quero usá-lo. Minha mala é meu melhor guarda-roupa agora. De repente me dou conta de que móvel e provisório são sinônimos. Eu sou móvel, portanto sou provisória. Agora que estou perdida eu me encontrei. A gente se acostuma com tudo e muito rapidamente. A gente se acostuma com a falta que os outros fazem. O cachorro não. Ele precisa de mais coisas do que eu. Nem parece que um dia descendeu de um lobo nômade. Ele tem necessidade de que tudo esteja no seu devido lugar. Ele ainda não aceitou que não há lugar para a gente. Por isso ele chora sem parar.
(Leila Guenther)
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