Carrego as estações
Carrego
as estações comigo
e tenho as mãos cansadas.
e tenho as mãos cansadas.
(No bolso
esquerdo um riacho murmura.)
Ali onde pequenas pedras se acumulam
uma canção exala seu vapor
depois se perde.
Ali onde pequenas pedras se acumulam
uma canção exala seu vapor
depois se perde.
Jardins
de primavera circulam no meu corpo,
um céu de
ouro verte seu perfume
e um vento ignorado agita suas asas.
e um vento ignorado agita suas asas.
Pasto de
segredos,
mescla de
memória e desejo,
meu corpo caminha com a chuva
(carrego as estações comigo)
à procura do sonho de uma nuvem fria.
meu corpo caminha com a chuva
(carrego as estações comigo)
à procura do sonho de uma nuvem fria.
Tantas
folhas trago nos braços
que um pássaro, solidário, se oferece
para carregar as estações comigo.
Do peito aberto os meus jardins se vão
e o pássaro me ajuda (memória
e desejo) a semear meu corpo.
que um pássaro, solidário, se oferece
para carregar as estações comigo.
Do peito aberto os meus jardins se vão
e o pássaro me ajuda (memória
e desejo) a semear meu corpo.
Ali
planto meus braços,
debaixo
daquelas árvores meus olhos ficam,
os pés roídos pela terra penduro numa árvore
e o tronco multiplico em cem pedaços :
lá vai, junto com as pedras,
no bojo do riacho antigo.
os pés roídos pela terra penduro numa árvore
e o tronco multiplico em cem pedaços :
lá vai, junto com as pedras,
no bojo do riacho antigo.
E pois
que carrego as estações comigo
os lábios deixo além, no descampado,
os lábios deixo além, no descampado,
e peço ao
pássaro que pelos cabelos atire
o que sobrou de mim
àquele mar onde me espera a memória
(e o desejo) do tempo em que não soube
carregar as estações comigo.
o que sobrou de mim
àquele mar onde me espera a memória
(e o desejo) do tempo em que não soube
carregar as estações comigo.
DÁDIVA
DEVOLVIDA
Birds in the Crescent trees were singing.
Dylan Thomas
O céu de
tanto o contemplar
já se
desprende de seus laços
e vem,
menino, se abrigar
no vão
inútil de meus braços.
Ah, um só
instante bastara
(de
amor?) para que minha história,
velha
paisagem, se mudara
em puro canto só memória.
em puro canto só memória.
E minha
voz, que não entendo,
a mim me
fala e quase nada
do que me
fala compreendo
: apenas
rio ponte estrada.
Da boca
um pássaro me voa,
no gesto
uma nuvem passagem
pede e o mundo se despovoa
pede e o mundo se despovoa
de mim
para outra paisagem.
Onde a
memória? Onde o canto?
Onde o
bando de aves que um dia
voou em meu céu? E o encanto
voou em meu céu? E o encanto
que
habitou esta alma vazia?
O céu já
se vai de meus dedos,
a
paisagem torna a seu pouso,
os olhos contemplam segredos
os olhos contemplam segredos
que
tentar decifrar não ouso.
Fatigado
agora caminho
a mesma estrada rio ponte
a mesma estrada rio ponte
: um
pássaro canta sozinho
e risca de azul o horizonte.
e risca de azul o horizonte.
O céu de
tanto o contemplar
eis se recolhe aos velhos laços
eis se recolhe aos velhos laços
e à força
de tanto o chamar
se me cerram os olhos baços.
se me cerram os olhos baços.
*
Agora que
não vejo vejo
tudo o que o céu me ofereceu :
tudo o que o céu me ofereceu :
satisfazer
o meu desejo
perder o que ninguém me deu.
perder o que ninguém me deu.
LOBO
Calado
abraça a
neblina
e cerra
os olhos
como quem
desmaia.
Púrpura,
mágoa
sem
remédio,
as patas
enredadas
em
silêncio e lama :
tudo em
volta é solidão
doçura.
E ninguém
sabe
de onde
vem
nem como
o uivo
alucinado
que lhe
sai da boca
e rasga a
noite
como um
coração
que arde.
Monk & Mulligan
Toda
lição é de casa. Uma ensina a aprender,
outra aprende a
ensinar. Não sei para quando
será a viagem. Não sei se parti, se já estou
de regresso, nem se a lição é de fato minha,
será a viagem. Não sei se parti, se já estou
de regresso, nem se a lição é de fato minha,
dos pombos que
giram no telhado ou do silêncio
entre o sussurro de Monk & o sopro de Mulligan
no meio da sala: ‘Round midnight.
Lá fora (
sol alto) lição interrompida. O sal da lição?
entre o sussurro de Monk & o sopro de Mulligan
no meio da sala: ‘Round midnight.
Lá fora (
sol alto) lição interrompida. O sal da lição?
Não saber. Sabida,
lição já não é.
Naquele
tempo eu viajava para longe, toda semana.
Um dia estranharam minha alegria ao partir.
tempo eu viajava para longe, toda semana.
Um dia estranharam minha alegria ao partir.
“É tão bom assim?”
“Não, é que aprendi
a antegozar o prazer da volta.” Nada se iguala
ao alívio antecipado do dever cumprido. A casa
acumula todas as lições : ontem, hoje – o mesmo
tempo a escoar entre o já-não-mais e o ainda-
não – centro de tudo o que sou ou tenho. Mas não
tenho : a casa o contém. E não há lição que o
detenha.
a antegozar o prazer da volta.” Nada se iguala
ao alívio antecipado do dever cumprido. A casa
acumula todas as lições : ontem, hoje – o mesmo
tempo a escoar entre o já-não-mais e o ainda-
não – centro de tudo o que sou ou tenho. Mas não
tenho : a casa o contém. E não há lição que o
detenha.
O que tenho é um
retrato na parede.
Um menino me fita apaziguado, seu olhar
se dissolve na brisa. Escancaro as janelas
e o calor da tarde me lembra : outono se foi,
inverno se foi, primavera aí vem (o rendilhado
de Monk prossegue & o sopro agudo de Mulligan).
Outra primavera : midday, midnight. O menino
salta do retrato, se aninha no sofá e me lembra,
Um menino me fita apaziguado, seu olhar
se dissolve na brisa. Escancaro as janelas
e o calor da tarde me lembra : outono se foi,
inverno se foi, primavera aí vem (o rendilhado
de Monk prossegue & o sopro agudo de Mulligan).
Outra primavera : midday, midnight. O menino
salta do retrato, se aninha no sofá e me lembra,
a sorrir : é hora
de voltar à lição interrompida.
Sorrio que sim, à sombra do jasmineiro
em flor.
Sorrio que sim, à sombra do jasmineiro
em flor.
É tarde. Não sei a
lição, há pouco
estava no jardim. Como enfrentar classe
tão avançada? A sombra se adensa, é noitinha.
O olhar do menino me fita, não sei se do retrato
ou do canto do sofá onde se aninha,
estava no jardim. Como enfrentar classe
tão avançada? A sombra se adensa, é noitinha.
O olhar do menino me fita, não sei se do retrato
ou do canto do sofá onde se aninha,
não sei
se do olho iluminado da noite, e sorri. Sorrio
que sim. É a hora. (Monk &Mulligan insistem,
agora sim : ‘Round midnight. Lição de casa.)
se do olho iluminado da noite, e sorri. Sorrio
que sim. É a hora. (Monk &Mulligan insistem,
agora sim : ‘Round midnight. Lição de casa.)
(Carlos Felipe Moisés)
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