Entrevista
concedida por Walter Carlos Costa*
Universidade Federal de Santa Catarina
* Estudou
Filologia Românica na Katholieke Universiteit Leuven, Bélgica. Tem Doutorado
sobre as traduções de Borges para o inglês pela University of Birmingham, Reino
Unido, e Pós-doutorado pela UFMG. É professor do Departamento de Língua e
Literatura Estrangeiras da Universidade Federal de Santa Catarina.
Anuário: Como surgiu a ideia de lançar um periódico junto à
Pós-Graduação em Literatura e qual era o público-alvo?
Walter: Sempre gostei muito de revista, algo que pode ajudar a
congregar, organizar e fortalecer os partidários de uma ideia ou atividade e
pode ter vastas consequências teóricas e práticas. Lembro sempre de Antonio
Gramsci (que li na tradução de Carlos Nelson Coutinho, uma das primeiras do
mundo, e depois em italiano) que dizia que uma revista é como um partido
político, ou seja, um órgão que pode ter um impacto direto na vida cultural.
Não por acaso, as revistas constituem um elemento central na história dos movimentos
estéticos, como se pode constatar, entre outros, na história do modernismo,
futurismo e surrealismo. Eu sempre gostei muito de editar, ou seja, de publicar
os outros. Acredito que existe uma paixão, ou pulsão, de editar, como existe
uma paixão de escrever e uma paixão de traduzir. A paixão de traduzir conjuga
as duas, porque o tradutor escreve através de outro escritor, ou, como disse
belamente o tradutor holandês August Willemsen em uma palestra na UFSC, ele é
“autor da obra alheia” (ver http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/fragmentos/article/view/4727/3979).
Essas paixões obedecem a aspectos diferentes de personalidade, embora possam
ocorrer na mesma pessoa. A paixão pela edição me acompanha desde o ensino
fundamental, que eu tive a sorte de fazer no interior do Estado de S. Paulo,
onde a escola pública era excelente. No meu caso, o “grupo escolar”, que é como
se chamava a escola na época, encorajava os alunos a publicarem jornais murais
e eu cheguei mesmo a editar um jornalzinho impresso. Quando entrei na UFSC, em
1982, eu vinha de décadas de leitura de revistas culturais nacionais e
estrangeiras e a participação ocasional em diferentes publicações. Aqui, fui
apresentado a Cleber Teixeira, editor da Noa Noa, que ele fundara no Rio e que
trouxera para Florianópolis para onde se mudou com a esposa, que trabalhava na
Eletrosul. Com Cleber, um dos grandes editores alternativos do país e que
publicou, em edições de pequenas tiragens e extremo cuidado, as primeiras
traduções revolucionárias de Augusto de Campos, entre outros, de Stéphane
Mallarmé e John Donne, me aprofundei no conhecimento do mundo da edição. De 1982
a 1988, ano em que parti para Birmingham, Inglaterra, para fazer meu doutorado,
montei, com colegas do CED (onde eu tinha 20 horas) um Núcleo de Publicações,
que publicava a revista Perspectiva (que continua ativa), os Cadernos
do CED e o Boletim do CED. No LLE (onde eu tinha 20 horas também) a
colega Carmen Rosa Caldas-Coulthard me convidou para renovar com ela a revista Ilha
do Desterro, da PGI (Pós-Graduação em Inglês), que tinha sido fundada por
Dilvo I. Ristoff. Dessa época data também a edição de plaquettes com
textos traduzidos por alunos da PGI, onde eu atuava ao mesmo tempo que na
Pós-Graduação em Literatura. Cabe recordar que, naqueles anos, um mestre podia
ser professor de um programa de pós. Para a edição dessas publicações, eu
frequentava assiduamente a Imprensa Universitária e conversava longas horas com
o diretor e com os funcionários de diferentes seções, desde a composição até a
impressão e a encadernação. Assim, eu vivia o mundo gráfico diretamente, tanto
na editora Noa Noa, que tinha sua sede na Rua Vidal Ramos, como na Imprensa
Universitária. Também fui indicado para fazer parte do Conselho Editorial da
Editora da UFSC, então sob a dinâmica gestão do escritor Salim Miguel, de quem
me tornei amigo. Ali, durante anos, participei de reuniões regulares e escrevi
dezenas de pareceres e pude acompanhar todos os passos da edição de uma grande
quantidade de livros. Ao voltar do doutorado, em 1992, vinha com interesse
redobrado pela edição. Continuei o trabalho de edição no CED e no LLE (onde tinha
ajudado a fundar outra revista, a Fragmentos, de língua e literatura
estrangeiras) e ao mesmo tempo comecei a participar da editora Paraula, fundada
por Dorothée de Bruchard em Porto Alegre e depois transferida para
Florianópolis. Na Paraula, especializada em edições bilíngues, eu cuidei de
contatos com as gráficas e editei uma revista, a Arca, que teve apenas
três números monográficos (Mário de Andrade, Voltaire e Eça de Queirós) e que
publicou vários artigos de mestrandos em literatura da UFSC. Logo depois,
assumi a coordenação da Pós em Literatura e uma de minhas prioridades era justamente
estimular a publicação de professores e alunos. Na época havia poucos
periódicos na UFSC e apenas uma minoria de colegas publicava de forma regular.
O programa já contava com uma revista, a Travessia, dirigida pela colega
Zahidé Muzart dentro de um enfoque com o qual eu me identificava plenamente: o
do pluralismo e o do respeito e estímulo à diferença de orientação e ponto de
vista. Cheguei a organizar dois números monográficos da Travessia, sobre
Guimarães Rosa e Manuel Bandeira, que incluíram colaboradores de várias
instituições e também de alunos do programa, alguns dos quais são atualmente
professores da UFSC. Como o programa já dispunha de uma revista, que acolhia
colaborações de colegas do programa e de outras universidades, e onde os alunos
publicavam apenas ocasionalmente, achei que era importante criar um órgão que
pudesse estimular a publicação dos alunos, através do aproveitamento dos
trabalhos das disciplinas. Como acreditava, e continuo acreditando, que uma
revista apenas de alunos limitaria a publicação, pensei em uma revista
prioritariamente dos alunos mas com participação de artigos de docentes. Da
mesma forma que a Travessia publicava (como deve ser) artigos de colegas
de outras instituições do país e do exterior, fazendo com que as produções dos
colegas locais aparecessem lado a lado com a produção de colegas nacionais e
internacionais, na revista dos alunos haveria artigos dos alunos ao lado de
artigos dos professores. Nos dois casos, acredito que a fórmula serve para
promover o diálogo e a competência. Assim, foi criada a Anuário, sob a
direção de uma mestranda (Daisi Vogel, hoje colega do Jornalismo) e com uma
comissão editorial que incluía outra aluna e dois professores, o colega Alckmar
Luiz dos Santos, que tinha acabado de entrar na UFSC, e eu. A iniciativa, me
parece, foi bem recebida por muitos alunos e por parte dos colegas.
Anuário: Gostaríamos que o Sr. comentasse sobre a escolha do nome do
periódico.
Walter: Acredito que veio naturalmente por se tratar de uma
publicação anual e de um programa de pós-graduação em estudos literários,
seguindo uma longa tradição de periódicos com a palavra no título, como na
célebre Anales de Buenos Aires, que foi dirigida por Jorge Luis Borges,
e a não menos célebre Annales d'histoire économique et sociale, que deu
origem à inovadora Escola dos Annales, que renovou a historiografia francesa e
mundial.
Anuário: Quais as principais dificuldades enfrentadas para que o
mesmo fosse editorado e impresso nos inícios dos anos 90?
Walter: Não houve maiores dificuldades. Desde que entrei na UFSC,
me envolvi com edição de periódicos e livros e conhecia bem como funcionava
toda a cadeia da edição, da captação e editoração dos originais à sua impressão
e distribuição. Claro que não tínhamos as fantásticas facilidades de hoje,
devidas ao desenvolvimento do computador pessoal e da internet, mas dispúnhamos
na UFSC de todos os meios necessários para uma edição de qualidade. O CCE
dispunha de duas revistas consolidadas, Travessia e Ilha do Desterro,
e várias novas estavam despontando em outros centros. A Imprensa Universitária,
embora lenta, fazia um trabalho competente e a Editora da UFSC começava a se
destacar entre as editoras universitárias, inclusive por iniciativas pioneiras
do Salim Miguel de parcerias com o Banco do Brasil, com empresas como a Fiat e
com prefeituras. Para o primeiro número contei também com a assessoria gráfica
de Cleber Teixeira, da Noa Noa, e de Dorothée de Bruchard, da Paraula, que fez
o design da capa. A editoração propriamente dita foi feita no próprio programa,
onde montamos um esquema de editoração eletrônica; neste número ela foi feita
pelo colega Alckmar e por mim. Convém assinalar ainda que a editora-chefe, a
então mestranda Daisi Vogel, já tinha ampla experiência jornalística em
veículos de circulação nacional. A impressão foi feita na Imprensa
Universitária, que eu conhecia bem; assim, pude acompanhar pessoalmente todas
as fases do primeiro número da Anuário. O custo da editoração foi zero
porque feita por nós mesmos e o custo da impressão foi coberto por uma cota que
o CCE possuía na Imprensa Universitária.
Anuário: Acerca da migração do Anuário de Literatura para o
meio digital e o abandono do meio impresso, o Sr. gostaria de comentar algo?
Walter: Sempre gostei de livro e, depois de uma rápida rejeição
inicial, me entusiasmei, de forma permanente, com as possibilidades da edição
eletrônica e da internet. Gosto de ler em todos os suportes e creio que os
suportes todos se complementam. É natural que as pessoas educadas no papel,
prefiram esse suporte, que foi, quando surgiu, tão revolucionário como a edição
digital atualmente. Neste momento, depois de décadas de convívio com a leitura,
a escrita e a editoração em meio digital, acredito que há uma tendência a que
certos tipos de texto apareçam e circulem preponderantemente, ou
exclusivamente, nesse suporte, tanto pela comodidade de uso como por problemas
de custo. Desse modo, as obras de referência, como enciclopédias e dicionários,
tendem, cada vez mais, a aparecer apenas em formato digital; outras, como os
livros de ficção, ensaio e poesia, tendem a aparecer tanto em formato digital
como impresso. Não devemos esquecer, e o ponto é importante, que todo arquivo
digital, pode ser impresso em qualquer momento e que todo arquivo
impresso pode ser transformado em arquivo digital. No caso dos
periódicos acadêmicos, me parece lógico que se migre total ou parcialmente ao
meio digital. Talvez a melhor fórmula seja a edição em meio digital, com alguns
exemplares impressos, o que é perfeitamente possível e não representa um custo
excessivo. Por comodidade, a tendência é os periódicos aparecerem em formato
digital apenas. Me parece sábia, portanto, a decisão da Anuário de
Literatura de migrar para o meio digital porque os custos são mínimos e a
difusão máxima. A decisão permite também uma maior autonomia aos responsáveis,
que não dependem de liberação de verbas e podem se concentrar na edição dos
textos. Em relação ao meio digital, gostaria ainda de destacar dois aspectos,
um de experiência pessoal de uso do Portal Capes de Periódicos e outro sobre o
Portal UFSC. Como os próprios periódicos, e como um número crescente de
pesquisadores, fui migrando, da leitura em papel para a leitura na tela. Embora
ainda seja mais agradável ler em papel, o uso do texto digital oferece
vantagens excepcionais para a pesquisa, entre elas, naturalmente, a facilidade
de busca. Desde o início de sua implantação, fui um usuário entusiasta do
Portal Capes de Periódicos, uma iniciativa inédita em termos mundiais. Algumas
revistas internacionais que eu lia em biblioteca (como a Hispanic Review e
a Luso-Brazilian Review) ou que eu assinava (como a Variaciones
Borges) passei a poder consultar diretamente no computador, de qualquer
lugar do mundo, porque logo consegui uma conexão VPN da UFSC, que me permite o
acesso a distância a todo o conteúdo digital a que a UFSC tem direito de
acessar por assinatura própria (como a base PROQUEST de teses e dissertações,
uma maravilha que comecei explorar há pouco) ou por assinatura via CAPES.
Embora o conteúdo da área de Humanidades seja apenas uma fração da disponível
na área de exatas e tecnológicas, e seja sobretudo de material em língua
inglesa (não contendo, portanto, algumas excelentes revistas em francês,
alemão, italiano e espanhol), o já disponível é vastíssimo, sobretudo através
dos portais Jstor, Project Muse e das editoras Oxford, Cambridge, Wiley e
Springer. Há também uma enorme quantidade de material de referência
(enciclopédias e dicionários), sobretudo da editora Gale. O Portal UFSC é outra
maravilha e tem sido montado de forma eficaz e inteligente por uma equipe da
BU, sob a coordenação da Andréa Figueiredo Leão Grants. Graças a esse trabalho,
o precioso conteúdo publicado pelas revistas da área de Letras da UFSC está
agora disponível, em dois cliques, a todos os interessados, que incluem,
naturalmente, os próprios pesquisadores do CCE.
Anuário: O Sr. atuou no Programa de Pós-Graduação em Literatura
lecionando aulas de teoria literária e hoje atua junto ao Programa de
Pós-Graduação em Tradução. Como o Sr. avalia suas escolhas acadêmicas e quais
os autores que marcaram mais significativamente essa trajetória?
Walter: Eu atuei por décadas na Pós-Graduação em Literatura e
gostaria de ter continuado a atuar. No entanto, em 2003, junto com alguns
colegas, montamos a PGET (Pós-Graduação em Estudos da Tradução), que surgiu,
aliás, de outra revista, inicialmente um anuário, que ajudei a fundar, a Cadernos
de Tradução, cujo primeiro número saiu em 1996. Com o novo curso,
aumentaram os encargos e em certo momento eu quis simplificar um pouco minha
vida, me concentrando nas novas tarefas, entre elas a publicação de revistas e
livros. Mas o que mais pesou na minha decisão de deixar a Pós-Graduação em
Literatura foi o clima de conflito, que sempre existiu no curso, mas que foi se
agravando nos últimos anos. Minha saída do programa não implicou o abandono de
meu interesse pela teoria literária, literatura brasileira, literatura
comparada, literaturas estrangeiras e estudos literários e culturais, em geral.
Continuo lendo, pesquisando e escrevendo sobre literatura, e participando de
eventos e bancas na UFSC e em outras instituições do país e do exterior. Só,
infelizmente, não oriento mais dissertações e teses sobre literatura que não
envolvam de alguma forma a tradução, salvo na graduação, onde tenho a felicidade
de orientar iniciação científica e TCCs de estudos literários. Minhas escolhas
acadêmicas foram condicionadas por minha formação anterior e pelas condições
concretas da UFSC e também pela concepção de carreira acadêmica que eu tive, ou
fui tendo, porque fui mudando, ao longo dos anos. Em primeiro lugar, minha
formação anterior foi, até certo momento, mais cultural que acadêmica. Meu
primeiro período de formação intelectual se deu, junto com uma ótima educação
formal de escola pública, por leituras pessoais, sobretudo do Suplemento
Literário de O Estado de S. Paulo e revistas culturais como Leitura
e Revista Civilização Brasileira e a participação em grupos de
criação literária, sobretudo de poesia. Meu segundo período foi o do estudo de
muitas e o aprendizado de algumas línguas estrangeiras: aprendi espanhol,
francês, holandês, inglês e italiano mas estudei também alemão, russo e
japonês, embora nunca tenha integrado essas línguas no meu cotidiano. Tenho,
porém, planos de retomar o alemão. Meu terceiro período foi o curso de Letras
em Leuven, Bélgica, depois de ter iniciado o mesmo em Santiago do Chile. Nesses
anos, além do estudo sistemático do francês e do espanhol e suas literaturas,
li extensivamente revistas e suplementos literários franceses, hispânicos,
flamengos e holandeses. Li também obras e correspondências completas de vários
escritores franceses, em especial Rousseau, Mallarmé e Flaubert. Comecei a ler,
de modo mais regular, filosofia, de tal modo que até pouco tempo atrás eu tinha
lido mais os filósofos que os literatos. Meu quarto e quinto períodos, já como
professor da UFSC, foi o doutorado na Inglaterra e o pós-doutorado na UFMG. Na
Inglaterra convivi durante quatro anos com outro enfoque, que comecei a admirar
particularmente através da obra de Borges, o do contato direto com as obras e
do desenvolvimento de hipóteses próprias, independentemente das correntes
hegemônicas da hora. Finalmente, o pós-doutorado significiou a retomada do
contato com a cultura mineira, que eu tinha frequentado bastante em meus anos
belgas quando preparei uma dissertação sobre a primeira tradução francesa de Grande
Sertão: Veredas. Minhas escolhas acadêmicas giraram em torno de um autor sobretudo:
Jorge Luis Borges; na pesquisa sobre sua obra pude dar abrigo a meus impulsos
de criatividade e erudição, assim como o de autonomia e universalidade. Ao
escolher me concentrar no estudo de um autor que é ao mesmo tempo ficcionista,
poeta, ensaísta e pensador, além de tradutor e editor, eu conciliava, de alguma
forma, os diferentes períodos de minha formação e também minhas diferentes
pulsões. Através de Borges eu me aprofundei em certos filósofos, como
Schopenhauer e Hume, e passei a conhecer a literatura fantástica na concepção
borgiana, que inclui tanto as da modernidade ocidental como as antigas e
medievais do Oriente e do Ocidente. Com ele aprendi também a valorizar o texto
traduzido como lugar não apenas de informação mas de meditação e discussão
estética e comecei a ler de forma sistemática as traduções para línguas
diferentes de grandes textos literários, inclusive das traduções para outras
línguas de obras brasileiras. Como exemplo, possuo uma pequena borgiana em
casa, não apenas com as edições em espanhol das obras de Borges, e obras de
crítica, mas também diferentes traduções para o português, francês, inglês,
holandês, italiano e alemão. Com frequência, leio e releio não apenas Borges em
espanhol mas nessas diferentes traduções e, não raro, é nas traduções, não no
original, que descubro aspectos antes não vistos, ou apenas entrevistos. Antes
de meu período belga e britânico, eu tinha lido extensamente teoria, com
destaque para os formalistas russos e estruturalistas tchecos e franceses. Meus
anos ingleses e a frequentação da obra de Borges contribuíram para me deixar
cético em relação às teorias, que procuro acompanhar e usar com moderação,
dando mais ênfase ao embate direto com a obra e seus arredores. Apesar disso,
leio regularmente teoria e sou, como boa parte dos colegas de estudos
literários, fascinado pelos escritos de Mikhail Bakhtin e Walter Benjamin. Sou
também leitor assíduo e admirador dos críticos Antonio Candido e Davi Arrigucci
Jr. Me parece que os dois aliam erudição, análise própria e elegância, algo
comum nos estudos literários franceses e ingleses mas meio raro no Brasil, onde
os estudos literários se profissionalizaram e se sofisticaram muitíssimo mas
tendem a ser escritos em jargão acadêmico e estão, muitas vezes, demasiado
colados às metodologias e autores da moda. Fazendo um balanço, eu não mudaria
muita coisa, salvo o de me concentrar não apenas na produção de artigos mas na
produção de livros próprios, o que pretendo fazer nos próximos anos. É
importante lembrar que é muitíssimo mais fácil pesquisar, escrever e publicar
atualmente na UFSC, e na maioria das federais, do que foi durante boa parte de
minha carreira. Ainda estamos longe das condições de trabalho dos colegas das
estaduais paulistas, mas hoje nossos salários são incomparavelmente melhores e
já não é tão comum, como antes, darmos 14 horas por semana, e até mais, em
diferentes disciplinas de língua e literatura, embora aconteça ainda, infelizmente,
com professores substitutos e em estágio probatório.
Anuário: E por fim, agradeceríamos se o Sr. referisse alguns textos
de autores contemporâneos lidos com prazer.
Walter: Sempre procurei integrar, em minhas leituras, autores
internacionais e nacionais, de várias épocas e países, mas minha predileção
recaiu em autores mais antigos, como os do Século de Ouro na Espanha e dos
séculos 18 e 19 na França, Inglaterra e Estados Unidos. Dos autores do século
20 eu li (e ensinei) mais os hispano-americanos, entre outros, na prosa, além
de Borges, Juan Rulfo, José Lezama Lima, Juan Carlos Onetti e Felisberto
Hernández, que acabo de traduzir com Pablo Cardellino (As Hortensias,
Grua, São Paulo, 2012); na poesia, tenho lido (e ensinado) os poetas do século
20 e inclusive vários do século 21. Os “contemporâneos” que leio com mais
prazer já não estão entre nós: os brasileiros Guimarães Rosa, Clarice
Lispector, Nelson Rodrigues e Machado de Assis, o tcheco Franz Kafka, os
húngaros Sandor Márai e Gyula Krúdy, os norte-americanos Emily Dickinson e
Herman Melville, os russos Anton Thekhov e Lev Tolstói, os britânicos Laurence
Sterne, Oscar Wilde e Gilbert Keith Chesterton, entre tantos. Mas entre os
contemporâneos mesmo, sou grato à leitura de alguns ficcionistas, poetas e
ensaístas estrangeiros e brasileiros. No caso dos estrangeiros, entre muitos,
gostaria de lembrar a obra excepcional dos ficcionistas uruguaios, entre eles
Mario Levrero e Henry Trujillo. Embora a literatura nacional venha sendo
acompanhada de perto pela universidade, através de cursos e trabalhos de TCC,
mestrado, doutorado e pós-doutorado, e por diferentes periódicos, sobretudo
pela Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, da UnB, falta um
acompanhamento da produção literária recente. Só uma parcela mínima dos
milhares de lançamentos é resenhada na imprensa. Na ficção, gostei muito de ler
os livros dos mineiros Maria Esther Maciel, Luis Alberto Brandão e Marcílio
França Castro: os três têm uma escrita muito elegante, algo pouco frequente na
ficção atual, que parece privilegiar a narrativa em detrimento do estilo. Gosto
muito também do livro O voo noturno das galinhas, de Leila Guenther,
escritora nascida em Blumenau, de ascendência alemã e japonesa e que vive
atualmente em Campinas, SP. O livro, que já tem uma competente tradução peruana
(El vuelo nocturno de las gallinas, traducción de Armando Alzamora,
Borrador Editores, Lima, 2010), chama a atenção pela destreza narrativa,
densidade de ideias, alta tensão emocional e escrita contida. Na poesia, leio
com deleite, entre outros, os livros de Paulo Henriques Britto, de quem tenho a
honra de ser amigo, Claudia Roquette-Pinto e Nelson Ascher, todos eles poetas
de dicção própria e com uma obra em pleno florescimento. No ensaio, gostaria de
destacar a obra do teórico Luis Costa Lima, que é um exemplo de desenvolvimento
independente; de Paulo Henriques Britto, que vem elaborando uma muito original
teoria e crítica da tradução poética, tema também das contribuições de José
Lira e Álvaro Faleiros; do polonês-brasileiro Henryk Siewierski que atua tanto
no Brasil quanto na Polônia; de Jerusa Pires Ferreira, a grande especialista em
literatura oral no país; de Júlio Castañon Guimarães, que, ao lado de uma
sólida obra de poeta e tradutor, cultiva o ensaio erudito e bem escrito, nos
melhores moldes internacionais. Vale a pena igualmente chamar a atenção para a
literatura traduzida, onde aparecem alguns dos melhores textos dos últimos
anos: cabe assinalar, entre tantos tradutores-escritores de qualidade, as
contribuições do veterano Boris Schnaiderman (um tradutor que revê
minuciosamente a tradução a cada republicação) e a dos jovens Paulo Werneck e
Caetano Waldrigues Galindo: os dois últimos realizaram uma verdadeira revolução
na tradução do diálogo, respectivamente, em Zazie no metrô, de Raymond
Queneau (Cosac Naify, 2009) e Ulysses, de James Joyce (Penguin Companhia
das Letras, 2012).
Florianópolis, 20 de outubro de 2012.
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