sexta-feira, 22 de julho de 2022

Harawi para Dona María Andrea Parado

 


Harawi1 para Dona María Andrea Parado2


Onde ficou o seu corpo, María Andrea, em que acaso habita? Huamanga chora e meu rosto se transformou na tuna3 que apodreceu de tanto amadurecer.

Que será de mim?

Onde encontrarei suas tranças prateadas, seu cabelo caboclo e prodigioso? Que direi às nossas filhas para apaziguar seus prantos, suas indagações, seu soluço de cordeiro, elas que perderam a luz que fervia seu sangue, seu sol primeiro?

As velas frias da catedral não servem para lhes dar consolo, de onde virá o calor das mãos que acariciavam gentes e animais, de onde virá meu alento desconsolado?

Diga-me onde deixaram o mapa de seu corpo, a figura diminuta que levava as mensagens pensando em seu povo, de nossas filhas seu afeto e luto.

Sangues de liberdade clamam suas veias, a África pulsa e sapateia uma canção em quéchua. Pressagio desgraças com sua ausência, a casa de pedra ensombrecida, suas sombras procurando seu corpo ao lado da videira que se esparrama como um traço de tinta que ditava aquilo que você não podia escrever. Os ditongos noturnos.

O infernal Carratalá4 abriu bocas em seu corpo, dele caíram sementes, plantas novas e dignas, como o eucalipto que se mexe por causa de ventos novos, com o sangue derramado que continuará tingindo as ruas de Huamanga, Huanta, virão massacres de quem seguir o seu exemplo. Em Cangallo procurarão o sal de suas feridas, o presságio de seu sono eterno.

Sol de insultos clamam por você, caminhos de pedra inconclusa, sopro de Quilcamachay.

Que será de nossa vida sem seus desejos? Quem dará sentido à noite escura, ao encanto de Apu5, ao voo da águia sobre nossos cabrestos?

Arderá seu corpo. O novo grito em sua garganta que encerrou a tortura, a paz das aflições de seu corpo inconfessável.

A visão inebriante de seu martírio. De joelhos seu olhar olhando o céu.

Resignada ao último suplício, murmurando: Venha, mundo novo!

(Julio César Zavala. Tradução minha e de Marcelo Donoso)

 

1 Harawi: tipo de música e/ou poesia andina difundido no império inca.

2 María Andrea Parado (1761-1822): mártir da Independência do Peru. Mestiça, falante de quéchua, foi torturada e morta por não delatar os companheiros revoltosos. Não sabendo escrever, ditava cartas enviadas aos guerrilheiros com informação sobre a movimentação dos inimigos.

3 Tuna: fruta típica peruana.

4 Carratalá: General José Carratalá, comandante das forças de repressão contra os que lutavam pela Independência. Incendiou e arrasou povoados como Cangallo.

5 Apu: do quéchua senhor; espírito das montanhas.

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