Entre árvores e casas, na cidade quase deserta à noite,
passeio na rua da frente para
trás enquanto a chuva cai.
As árvores perderam as folhas
mas em silêncio
imaginam outras, as janelas
dos edifícios fecharam-se
sobre o rosto de mais um dia.
Passa por mim
e estende a mão um rapaz que
conheci ontem no café,
grita-me absurdamente que a
Margaret é que, ah ah.
Ah ah o quê? A mulher que
estava comigo
quando eu o encontrei, a dado
momento
voltou-se para ele e
disse-lhe: tenho coisas sérias
a discutir com este senhor;
por isso cale-se, não
nos aborreça. Mas ele, antes
de se voltar
para os companheiros da sua
mesa,
ainda nos perguntou se a
política
internacional não nos
interessava. Se quiséssemos
falar da independência do
Quebeque, já sabíamos,
em todo o caso, quem devíamos
procurar.
Poucos momentos antes tínhamos
falado dos Rolling
Stones, foram os jornais que
contaram a visita que Margaret
fez a Mick Jagger por ocasião
de um concerto
de rock-and-roll. A
mulher sentada ao meu lado não tinha
coisas sérias a discutir
comigo, como se provou logo a seguir
pelo silêncio que sobreveio
entre nós. E todavia
tinha saído da minha casa no
dia anterior
sem responder a uma pergunta
que lhe tinha feito:
por que te afastas,
dissera-lhe eu, quando a minha mão
faz que procura o teu cabelo?
Continuo
a passear na rua para a frente
e para trás. É então
que aparece a rapariga de quem
eu estava à espera.
Tinha-a visto dentro do café a
beber cerveja com os amigos,
mas em vez de pedir-lhe que
viesse fazer-me companhia,
tinha-me posto a caminhar na
avenida, para cá e para lá.
Ela olha-me nos olhos. E eu,
que passei a vida a esperar
que procurassem por mim aí.
descubro
que já não quero encontrar o
fio
da meada em que se emaranham
os outros. Nenhum
vidro se parte em mim, nenhuma
porta se abre, larga e brusca,
fico parado a espantar-me e
tenho
o lugar da alma vazio. Foi
para
chegar aqui que aceitei
discutir, estar sozinho,
privar-me, que perdi tardes
inteiras a ver abanar
a erva e os pinheiros? Estava
à espera do absoluto
porque não se vive para outra
coisa
e compreendo que já não tenho
braços
com que nadar ao seu encontro.
Podia deitar-me
no chão e esperar que um
automóvel me atropelasse,
mergulhar a cabeça na água da
fonte para que o frio
me acordasse. Fiquei apenas
distraído
a aprofundar o desencontro das
sensações,
a fazer as contas aos anos que
faltariam para morrer de vez.
Enganei-me na estrada, devia
ter tomado por outro caminho.
Olhei para cima e devia ter
olhado para baixo.
Seja como for, o irremediável
ainda há-de ter remédio.
Não eram só os olhos, era o
corpo todo, era a sua boca.
Mas como podia pensar nela com
ela ali presente?
Se eu te amasse, se eu pudesse
amar-te, ó rapariga.
Falhou-me o espírito nessa
hora suprema por estar
de mais, esteve-se nas tintas
para a complexidade
dos meus sentimentos. A beleza
perfeita diante
de mim. E eu indiferente. As
tardes
de chuva perderam a nostalgia
que já tinham sido,
as ruas e as árvores deixaram
de estar nítidas
na objectiva da máquina
fotográfica. E se não
era isso, embaciaram-se com a
minha descoberta.
Em que palma de mão hei-de
pousar a minha,
seguro de sentir que me hei-de
atormentar?
Fui sozinho a pé para casa
depois de a ter mandado
embora e continuava a
incomodar-me
o cheiro da carne queimada do
jantar.
Deitar-me com ela à beira de
mim mesmo, se fosse
possível. Mas ela sorri,
abre-me o corpo e eu esvazio-me
do nada que cá tinha. Dêem-me
alguém
com quem se possa a sério
conversar e terei razões
para ainda dizer algum bem da
existência.
O tempo que é preciso para que
as searas ondulem ao vento,
como demora a modesta água da
fonte a chegar ao mar.
Mas nós estendemos as mãos
para o fogo
que nos havia de consumir e
tudo o que nos fica
é a náusea doce desse cheiro
cru. Até para arder
convém ter aprendido com as
montanhas e os ventos
o tempo que demora uma folha
de plátano a apodrecer.
Os livros que é preciso ter
lido para interpretar
uma única frase, a solidão que
se tem de conhecer
antes de ir ao encontro dos
amigos. É contra mim mesmo,
ocioso, que em casa vou
imaginando
as teias de aranha que me
hão-de purificar
de me ter enganado. À medida
que passam
os anos o príncipe aspira a
governar; e no
entanto não se possui
inteiramente o próprio destino.
Por que caem as folhas
amarelas das árvores no Outono?
Ela ou alguém podia ter
respondido: simplesmente
para que o verde tenha o seu
lugar adequado na árvore
e para que nos desenhos das
crianças o vermelho
nos surpreenda e faça sorrir.
Cansado de mim
mesmo e de ouvir-me falar,
lembrei-me subitamente
do antigo vizinho que
encontrara à tarde. A rapariga
que vivia com ele tinha-se
casado, ele abandonara
a literatura pela fotografia. Como
tudo
no mundo em pouco tempo muda.
E não sei
o que é que eu tinha na cara,
porque ao partir
a mulher que estava com ele
pôs-me a mão no ombro
e disse: coragem. Coragem?
Aqui estou, apesar de tudo
disposto a prosseguir. Se a
morte fosse agora,
não me apanhava a corrigir-me?
A essência dos anjos. Eles riem,
mas discretamente: como uma
sombra no jardim onde vivem
as densas árvores. Quem os
ouve? Nós, a quem pesa o
corpo e a quem a alma inspira
dúvidas e atormenta? E
invejamos a sua condição:
são-lhes poupadas a idade
e a lenta decadência dos
movimentos, a frouxidão
do pensamento. Depois dos
anos em que, como se fôssemos
imortais, nos alegrámos
com a incomparável beleza
do mundo, o seu esplendor.
Tudo, nesse tempo inocente,
parecia ter sido criado para
festejar a nossa humana
glória,
para desafiar a temível força
dos nossos braços e das nossas
pernas. Não éramos deuses?
Os anjos: um ideal. A maldade
da
ambição é-lhes desconhecida. E
a
crueldade da vitória. Eles não
necessitam de mentir, de
espezinhar.
Nem de cuspir com desdém no
rosto
dos inimigos. Protege-os da
inveja e
do ódio uma barreira
invisível. Nesse
espaço para além do espaço,
puros,
despreocupados, eles sorriem e
às
vezes, suavemente, riem.
Vêem-nos?
Mas nós não os vemos.
Imaginamos
a sua face imaterial para nos
consolarmos
da nossa invencível, tão
pesada
irrealidade? Ela envolve-nos
nas
suas promessas de eternidade.
Quem tem certezas e a ciência
suficiente para, tendo chegado
a entender, explicar o que se
passa? Os anjos: nós, como
queríamos ser. Eles não
existem,
provavelmente. Ou somos nós
que não passamos de um sonho
dos deuses que também não
existem, embora nas praças
antigas das cidades
destruídas,
mutiladas, as suas estátuas
nos
façam crer que eles são, desde
os séculos mais antigos, parte
irrecusável do nosso destino.
Se
eles falassem, anjos ou
deuses,
e nos revelassem as palavras
que,
pronunciadas ou secretamente
balbuciadas, encheram de
sentido
as vidas antigas, a dos
filósofos
e a dos músicos, a dos
homens
e a das mulheres de quem
ninguém conservou a memória,
que provavelmente ninguém
amou nem fez estremecer. Os
anjos e os deuses são parte do
nosso destino. Por isso nós os
evocamos e de noite, em
estações
dominadas por todos os
excessos,
eles nos visitam, para nos
atormentar
com a sua perfeição ou,
vendo-nos
duvidar, nos pôr a mão
pacificadora
no ombro. Mortais, só
pressentimos a
intemporal essência dos anjos
porque
nos foi concedida a capacidade
de
comparar. Imaginar uma sublime
existência está ao nosso
alcance.
Olham-nos com atenta admiração
os
cães e provavelmente estremecem
diante do nosso poder outros
animais.
Nos olhos deles descortinamos
um
espanto semelhante àquele com
que, na nossa ambiciosa
modéstia,
nos fixamos na figura exemplar
e
invejada dos anjos. A eles,
aos animais,
não lhes pesa não serem senão
parte
insignificante da nossa
existência?
Não os ofende não poderem sentar-se
Não os ofende não poderem sentar-se
à mesa connosco e partilhar,
entre risos
e no calor das confidências, a
carne e o
peixe, o vinho e as laranjas?
Aos olhos
deles a nossa existência está
cheia de
privilégios imerecidos. E eles
assistem,
irritados mas silenciosos, às
nossa
queixas. Porque não nos
aperfeiçoamos
a entender o Ser em si mesmo,
nas suas
múltiplas, imprevistas
manifestações?
Aspiramos à sublime
transparência
dos anjos, à perfeição sem
lacunas
dos deuses, à irrealidade. Com
que direito,
se desperdiçar todas as
oportunidades é
a nossa vocação mais evidente?
Os
animais olham-nos com a
intensidade
com que nos olham as pessoas.
Mas
nós recusamos-lhes a
capacidade de
sentir e de entender. Tamanha
é a nossa
arrogância. Os anjos, se nos
falassem,
não teriam razão de queixa da nossa
não teriam razão de queixa da nossa
soberba, nada diriam da nossa
cegueira
e da nossa pressa? Mas os
anjos não se
queixam, os anjos não falam.
Ou não
chega aos nossos ouvidos
exacerbados
pelos ruídos da cansativa luta
pela
existência o som, a música da
sua voz.
Porque para ouvir é necessário
estar
atento. E distrai-nos do que
acontece
à nossa volta, dos convites do
Ser a
aceder a outra realidade, a
algazarra
das metas a perseguir, das
corridas a
ganhar. Nós, tantas vezes
vitoriosos
dos despiques insensatos por
um
triunfo, tantas vezes abatidos
pelas
aparentes derrotas da ambição.
Se
aprendêssemos a ver e a ouvir,
se
não nos cansasse a ilusória
monotonia com que se sucedem
as
estações na sua fiel
regularidade. Se
aprendêssemos, antes de
morrer, a viver.
Para escrever um poema juntei algumas palavras.
Um poema não passa disso:
algumas palavras.
O problema, evidentemente, é o estilo. O que
seria um poema sem o estilo em que ele vê a
luz do dia? Nada. Parece simples. Mas não é
simples: o estilo é a dimensão metafísica do
poema. Não é necessário saber o que é o
estilo nem aspirar a ter estilo para ter estilo.
O problema, evidentemente, é o estilo. O que
seria um poema sem o estilo em que ele vê a
luz do dia? Nada. Parece simples. Mas não é
simples: o estilo é a dimensão metafísica do
poema. Não é necessário saber o que é o
estilo nem aspirar a ter estilo para ter estilo.
O estilo é como a morte: não é
possível
escapar-lhe. Olhei para as palavras do poema
e perguntei-me: em que traje de morto é que,
sem pensar nisso, fiz entrar o meu corpo?
Insensíveis aos detalhes da minha metafísica,
que pensariam das minhas palavras e da maneira
como as juntei os especialistas da poesia? Desin-
teressei-me da resposta. À gente do convento o
que pertence ao convento. À gente da corte os
trajes da corte. E fui dar uma volta de bicicleta.
escapar-lhe. Olhei para as palavras do poema
e perguntei-me: em que traje de morto é que,
sem pensar nisso, fiz entrar o meu corpo?
Insensíveis aos detalhes da minha metafísica,
que pensariam das minhas palavras e da maneira
como as juntei os especialistas da poesia? Desin-
teressei-me da resposta. À gente do convento o
que pertence ao convento. À gente da corte os
trajes da corte. E fui dar uma volta de bicicleta.
(João Camilo, autor de, entre
outros, Os Filmes Coloridos [Edições
Árvore], O T de Tu [Edições Fenda], Na Pista, entre as Linhas [Imprensa
Nacional/ Casa da Moeda], A mais Nobre
das Artes [Editorial Caminho] e Um
Animal de Pele Branca, Imaculada [Ovni])
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