Kitosch era um jovem nativo a serviço de um jovem fazendeiro branco de Molo. Uma quarta-feira de junho, o colono emprestou sua égua marrom a um amigo, para que este fosse à estação tomar o trem. Mais tarde, mandou Kitosch buscar a égua, ordenando-lhe que não a montasse em nenhuma hipótese, e que a trouxesse pelo cabresto. Kitosch, porém, saltou sobre a égua e cavalgou por todo o caminho de volta. No sábado, seu patrão foi informado da desobediência por alguém que vira o nativo sobre ela. E, na tarde de domingo, como punição, fez com que Kitosch fosse açoitado e depois amarrado num galpão, onde, na noite de domingo, viria a morrer.
(...)
Kitosch não teve muita oportunidade de exprimir sua intenção. Como estava trancado no galpão, sua mensagem foi expressa de modo singelo, com um único gesto. O vigia noturno declarou que ele havia chorado a noite toda. Mas não deve ter sido assim, pois à uma da manhã ele conversou com o toto que estava no galpão. Ele pediu ao menino que gritasse, pois o açoitamento o ensurdecera. À uma hora ele pediu ao toto que afrouxasse as amarras em seus pés, dizendo que de qualquer modo ele não poderia fugir. Quando o toto atendeu ao seu pedido, Kitosch disse-lhe que queria morrer. Pouco depois, ele se virou para um lado e para o outro, exclamou “Vou morrer!” e morreu.
Três médicos testemunharam no julgamento.
Para o médico-cirurgião do distrito, que realizara a autópsia, a morte fora causada pelos ferimentos e lesões que encontrara no corpo. Na opinião dele, nenhum cuidado médico imediato poderia ter salvo a vida de Kitosch.
No entanto, os dois médicos de Nairóbi, convocados pela defesa, eram de outra opinião.
De acordo com eles, o açoitamento em si não foi suficiente para provocar a morte. E um fator importante tinha de ser levado em conta: a vontade de morrer de Kitosch. Sobre essa questão, o primeiro médico afirmou que podia falar com autoridade, pois já vivera vinte e cinco anos no país e sabia como pensavam os nativos. Muitos médicos poderiam confirmar que o desejo de morrer, num nativo, poderia de fato ocasionar a morte. No caso em discussão, isto era especialmente evidente, uma vez que o próprio Kitosch deixara claro que queria morrer. E o outro médico o apoiou nesse ponto de vista.
Era bem provável, prosseguiu então o médico, que se Kitosch não tivesse tomado essa atitude, ele não teria morrido. Se, por exemplo, ele tivesse se alimentado, talvez não perdesse o ânimo, pois é sabido que a fome diminui a coragem. E acrescentou que o ferimento do lábio talvez não tivesse sido ocasionado por um chute, mas poderia ser apenas uma mordida do próprio Kitosch, desesperado com tanta dor.
O médico, além disso, acreditava que Kitosch só havia tomado a decisão de morrer após as nove horas, quando aparentemente havia tentado fugir. Tampouco ele morrera antes das nove. Ao ser surpreendido na tentativa de escapar, e ser amarrado de novo, o fato de ser um prisioneiro, segundo o doutor, poderia ter pesado em sua decisão.
Os dois médicos de Nairóbi então apresentaram suas conclusões sobre o caso. A morte de Kitosch, segundo eles, fora causada pelo açoitamento, pela fome e pela vontade de morrer, sendo esta última motivo de especial ênfase. O desejo de morrer poderia, disseram ainda, ter se originado como consequência do açoitamento.
Após o testemunho dos médicos, o caso passou a girar em torno daquilo que foi chamado no tribunal de “a teoria da vontade de morrer”. O médico-cirurgião do distrito, que fora o único a examinar o corpo de Kitosch, rejeitou essa teoria, e deu como exemplo pacientes seus com câncer que, mesmo querendo morrer, não haviam conseguido tal objetivo. Viu-se, porém, que todos eles eram europeus.
No final, o veredito do júri foi “culpado de lesões graves”. O mesmo veredito coube aos nativos implicados, mas levou-se em conta que, como haviam agido por ordem do patrão, um europeu, seria injusto enviá-los para a prisão. O juiz então determinou que fosse aplicada uma sentença de dois anos de reclusão no caso do colono, e de um dia no dos nativos.
Ao lermos os autos do processo, percebemos como é desconcertante e humilhante para os europeus o fato de os nativos poderem, por conta própria, decidir o momento em que querem abandonar a vida. A África é a terra materna dos nativos e, seja o que for que lhes fazemos, quando resolvem partir eles o fazem por sua livre e espontânea vontade, porque não desejam mais ficar. A quem cabe a responsabilidade pelo que se passa numa casa? Ao seu dono, àquele que a herdou.
Por causa do acentuado senso do que é certo e decoroso, a figura de Kitosch, com seu inquebrantável desejo de morrer, embora há tantos anos removida de nossa presença, se destaca com uma beleza toda própria. Nela ganha corpo a fugacidade das coisas selvagens que, na hora da necessidade, sabem que podem buscar refúgio em alguma outra parte. Aqueles que partem por livre e espontânea vontade, esses nunca podemos agarrar.
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Kitosch não teve muita oportunidade de exprimir sua intenção. Como estava trancado no galpão, sua mensagem foi expressa de modo singelo, com um único gesto. O vigia noturno declarou que ele havia chorado a noite toda. Mas não deve ter sido assim, pois à uma da manhã ele conversou com o toto que estava no galpão. Ele pediu ao menino que gritasse, pois o açoitamento o ensurdecera. À uma hora ele pediu ao toto que afrouxasse as amarras em seus pés, dizendo que de qualquer modo ele não poderia fugir. Quando o toto atendeu ao seu pedido, Kitosch disse-lhe que queria morrer. Pouco depois, ele se virou para um lado e para o outro, exclamou “Vou morrer!” e morreu.
Três médicos testemunharam no julgamento.
Para o médico-cirurgião do distrito, que realizara a autópsia, a morte fora causada pelos ferimentos e lesões que encontrara no corpo. Na opinião dele, nenhum cuidado médico imediato poderia ter salvo a vida de Kitosch.
No entanto, os dois médicos de Nairóbi, convocados pela defesa, eram de outra opinião.
De acordo com eles, o açoitamento em si não foi suficiente para provocar a morte. E um fator importante tinha de ser levado em conta: a vontade de morrer de Kitosch. Sobre essa questão, o primeiro médico afirmou que podia falar com autoridade, pois já vivera vinte e cinco anos no país e sabia como pensavam os nativos. Muitos médicos poderiam confirmar que o desejo de morrer, num nativo, poderia de fato ocasionar a morte. No caso em discussão, isto era especialmente evidente, uma vez que o próprio Kitosch deixara claro que queria morrer. E o outro médico o apoiou nesse ponto de vista.
Era bem provável, prosseguiu então o médico, que se Kitosch não tivesse tomado essa atitude, ele não teria morrido. Se, por exemplo, ele tivesse se alimentado, talvez não perdesse o ânimo, pois é sabido que a fome diminui a coragem. E acrescentou que o ferimento do lábio talvez não tivesse sido ocasionado por um chute, mas poderia ser apenas uma mordida do próprio Kitosch, desesperado com tanta dor.
O médico, além disso, acreditava que Kitosch só havia tomado a decisão de morrer após as nove horas, quando aparentemente havia tentado fugir. Tampouco ele morrera antes das nove. Ao ser surpreendido na tentativa de escapar, e ser amarrado de novo, o fato de ser um prisioneiro, segundo o doutor, poderia ter pesado em sua decisão.
Os dois médicos de Nairóbi então apresentaram suas conclusões sobre o caso. A morte de Kitosch, segundo eles, fora causada pelo açoitamento, pela fome e pela vontade de morrer, sendo esta última motivo de especial ênfase. O desejo de morrer poderia, disseram ainda, ter se originado como consequência do açoitamento.
Após o testemunho dos médicos, o caso passou a girar em torno daquilo que foi chamado no tribunal de “a teoria da vontade de morrer”. O médico-cirurgião do distrito, que fora o único a examinar o corpo de Kitosch, rejeitou essa teoria, e deu como exemplo pacientes seus com câncer que, mesmo querendo morrer, não haviam conseguido tal objetivo. Viu-se, porém, que todos eles eram europeus.
No final, o veredito do júri foi “culpado de lesões graves”. O mesmo veredito coube aos nativos implicados, mas levou-se em conta que, como haviam agido por ordem do patrão, um europeu, seria injusto enviá-los para a prisão. O juiz então determinou que fosse aplicada uma sentença de dois anos de reclusão no caso do colono, e de um dia no dos nativos.
Ao lermos os autos do processo, percebemos como é desconcertante e humilhante para os europeus o fato de os nativos poderem, por conta própria, decidir o momento em que querem abandonar a vida. A África é a terra materna dos nativos e, seja o que for que lhes fazemos, quando resolvem partir eles o fazem por sua livre e espontânea vontade, porque não desejam mais ficar. A quem cabe a responsabilidade pelo que se passa numa casa? Ao seu dono, àquele que a herdou.
Por causa do acentuado senso do que é certo e decoroso, a figura de Kitosch, com seu inquebrantável desejo de morrer, embora há tantos anos removida de nossa presença, se destaca com uma beleza toda própria. Nela ganha corpo a fugacidade das coisas selvagens que, na hora da necessidade, sabem que podem buscar refúgio em alguma outra parte. Aqueles que partem por livre e espontânea vontade, esses nunca podemos agarrar.
Karen Blixen (Isak Dinesen), A fazenda africana. Trad. Claudio Marcondes. São Paulo, Cosac Naify, 2005.
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