Uma mulher vai de autocarro e de repente, num cruzamento, vê-se a si mesma pela janela, vinte anos mais velha, a rir junto a um homem alto — o homem parece constrangido, como quem se quer afastar, e ela encosta a cabeça no peito dele e parece feliz. A mulher salta do lugar, toca a campainha para sair, mas o motorista não abre porque não é uma paragem, e quando cai o verde, arranca, cruza a avenida, só pára longe. Mal a porta se abre, a mulher sai a correr em sentido contrário à multidão, até avistar o homem alto.
Esta história é parte de um livro que li há dias. Os livros dão-nos um corte da vida e os livros que fazem diferença abrem um corte na nossa vida. Uma noite, antes de escovar os dentes ou mudar o alarme, sentamo-nos na cama a folhear um livro que acabámos de receber. Lemos o primeiro páragrafo, voltamos a página, e algo acontece. Não é a laçada do “best seller”, que nos amarra ao que vai acontecer. É mais como o escuro de um poço ou de um quarto. Queremos e não queremos, metemos a cabeça e voltamos a tirá-la, tentamos habituar os olhos para ver, mas não vemos nada. E então, o que realmente está a acontecer é que se abriu um corte e estamos a ser puxados. Lemos para saber o que aquilo é, com um inquietante pressentimento de que somos parte daquilo, ou aquilo era parte de nós. Trata-se de viver aquilo, e não de saber como acaba.
Vários escritores brasileiros me foram dando a boquiaberta maravilha de ainda por cima aquilo ser a minha língua, e a vez mais recente não seria a última, escrevi aqui há uma semana.
Nessa mesma noite, sentei-me na cama a folhear um livro que acabava de receber, trazido do Brasil pela autora. Li o primeiro páragrafo, que é toda uma página, voltei a página e algo aconteceu. A história terminava logo ali, mas aquilo era só o começo. Continuei a ler sem perceber bem o que lia, com a rara sensação de que isso não tinha importância porque quando chegasse ao fim voltaria ao princípio. O fim era estar dentro daquilo —aquele quarto, aquela casa, aquela box de chuveiro, aquela mesa de restaurante, aquele labirinto, aquele autocarro, e habituar os olhos ao escuro.
Esta história é parte de um livro que li há dias. Os livros dão-nos um corte da vida e os livros que fazem diferença abrem um corte na nossa vida. Uma noite, antes de escovar os dentes ou mudar o alarme, sentamo-nos na cama a folhear um livro que acabámos de receber. Lemos o primeiro páragrafo, voltamos a página, e algo acontece. Não é a laçada do “best seller”, que nos amarra ao que vai acontecer. É mais como o escuro de um poço ou de um quarto. Queremos e não queremos, metemos a cabeça e voltamos a tirá-la, tentamos habituar os olhos para ver, mas não vemos nada. E então, o que realmente está a acontecer é que se abriu um corte e estamos a ser puxados. Lemos para saber o que aquilo é, com um inquietante pressentimento de que somos parte daquilo, ou aquilo era parte de nós. Trata-se de viver aquilo, e não de saber como acaba.
Vários escritores brasileiros me foram dando a boquiaberta maravilha de ainda por cima aquilo ser a minha língua, e a vez mais recente não seria a última, escrevi aqui há uma semana.
Nessa mesma noite, sentei-me na cama a folhear um livro que acabava de receber, trazido do Brasil pela autora. Li o primeiro páragrafo, que é toda uma página, voltei a página e algo aconteceu. A história terminava logo ali, mas aquilo era só o começo. Continuei a ler sem perceber bem o que lia, com a rara sensação de que isso não tinha importância porque quando chegasse ao fim voltaria ao princípio. O fim era estar dentro daquilo —aquele quarto, aquela casa, aquela box de chuveiro, aquela mesa de restaurante, aquele labirinto, aquele autocarro, e habituar os olhos ao escuro.
Quem respirava ali? Quem falava? Homem, mulher, planta ou animal? Velho ou novo? Morto ou vivo? E o que estava a acontecer? Um enlace ou uma ruptura? Um sonho, uma visão, uma memória? O passado de alguém ou o meu futuro?
Ao longo de cem páginas, julguei avistar Kafka, e vi mesmo Borges, Blake, Poe, Raduan Nassar ou Clarice Lispector. Mas na verdade aquilo não se parecia com nada. Aquilo era “O Vôo Noturno das Galinhas”, da brasileira Leila Guenther. Contos-cortes, brevíssimos como um bater de asas, deixando à vista toda a galáxia que é uma cabeça.
Há livros em que tudo parece acontecer mas nada muda. Há livros em que tudo muda e nada parece acontecer.
Enquanto estivermos vivos a história continua.
Ao longo de cem páginas, julguei avistar Kafka, e vi mesmo Borges, Blake, Poe, Raduan Nassar ou Clarice Lispector. Mas na verdade aquilo não se parecia com nada. Aquilo era “O Vôo Noturno das Galinhas”, da brasileira Leila Guenther. Contos-cortes, brevíssimos como um bater de asas, deixando à vista toda a galáxia que é uma cabeça.
Há livros em que tudo parece acontecer mas nada muda. Há livros em que tudo muda e nada parece acontecer.
Enquanto estivermos vivos a história continua.
(Alexandra Lucas Coelho*, jornal Público, seção "Viagens com Bolso", Lisboa, 18/12/2009)
* Jornalista do Público, autora de Oriente Próximo (Relógio D'Água, Lisboa, 2007), sobre os conflitos entre israelenses e palestinos, e de Caderno Afegão (Tinta-da-china, Lisboa, 2009)
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