sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Dois poemas de Ruy Proença

AOS QUE TORTURAMOS NOSSA MÃE

eu queria ser outra
queria ter nascido
em outro lugar
queria viver
onde não houvesse
sofrimento
onde todos me olhassem
através de olhos claros
onde as mãos
fossem quentes
e me procurassem
queria não ver mais
em meu espelho
a desconfiança o terror
queria ouvir
outra língua
que não tivesse
as palavras
agora ouvidas
sons que me ferem
e me fazem fugir
queria outros tetos
para me abrigar
outras árvores
para me dar sombra
queria outro céu
mais próximo
outras águas
que me embalassem




CASA E BULLDOZER NA FAIXA DE GAZA

casa:
abrigo
onde circulo
lambendo sonhos
desarmado
– meu repouso;
quarteto de cordas em caramujo
onde sou fome e pão
ainda que me destempere
onde me reconheço nas manchas
de sangue café vômito sexo memória
onde estão meus avós ausentes
minha mãe ausente
meu pai irmãos amigos
eu a mulher os filhos
a ideia mesma de amor
tudo o que se dispersa
com a fumaça do cachimbo
meus objetos obesos
minhas quinquilharias
canetas chapéus selos pedras
meus livros meus papéis meus tijolos
minhas âncoras
meu cão ausente

bulldozer:



(Ruy Proença, Caçambas. São Paulo, Editora 34, 2015)




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