AOS
QUE TORTURAMOS NOSSA MÃE
eu
queria ser outra
queria
ter nascido
em
outro lugar
queria
viver
onde
não houvesse
sofrimento
onde
todos me olhassem
através
de olhos claros
onde
as mãos
fossem
quentes
e
me procurassem
queria
não ver mais
em
meu espelho
a
desconfiança o terror
queria
ouvir
outra
língua
que
não tivesse
as
palavras
agora
ouvidas
sons
que me ferem
e
me fazem fugir
queria
outros tetos
para
me abrigar
outras
árvores
para
me dar sombra
queria
outro céu
mais
próximo
outras
águas
que
me embalassem
CASA
E BULLDOZER NA FAIXA DE GAZA
casa:
abrigo
onde
circulo
lambendo
sonhos
desarmado
–
meu repouso;
quarteto
de cordas em caramujo
onde
sou fome e pão
ainda
que me destempere
onde
me reconheço nas manchas
de
sangue café vômito sexo memória
onde
estão meus avós ausentes
minha
mãe ausente
meu
pai irmãos amigos
eu
a mulher os filhos
a
ideia mesma de amor
tudo
o que se dispersa
com
a fumaça do cachimbo
meus
objetos obesos
minhas
quinquilharias
canetas
chapéus selos pedras
meus
livros meus papéis meus tijolos
minhas
âncoras
meu
cão ausente
bulldozer:
(Ruy Proença, Caçambas. São Paulo, Editora 34, 2015)
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