quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Quatro poemas icterofágicos

I am dead, Horatio

Vestia preto
e sabíamos que era um luto prematuro.
Em suas mãos os livros,
e de sua boca as palavras ganhavam outro sentido.
Prezava a luz do dia
como a escuridão da noite, e quantas vezes vimos
seus olhos-luzes surgindo no escuro.
Dizem que falava só e estava louco,
que trocara o amor ideal pelo do corpo
– como troca nisso houvesse –
e que era um homicida.
Partilhei sua companhia em dias dúbios,
vi o que ele viu, comi do que comeu e digo:
sua mente, o fio da espada.
Terá encontrado um elixir na vingança,
executada como arte,
o que lhe deu vida extremada
e morte extrema.
Prova disso é que todos choraram quando,
ao abrirmos os portões levando o corpo,
anunciei:
            O príncipe Hamlet está morto.



Durar & permanecer

É preciso esquecer para lembrar:
o tempo nos acossa com a multitude
que os olhos sem distingüir desfiguram;
do peso da terra de séculos ressurge
o deus faraó envolto em cinzas e pó;
da têmpera em cacos,
a fagulha do anjo no sonho de Constantino.
Tudo surge para derreter e partir,
como um sonho que aperta
resquícios do dia num redemoinho
onde andamos não raro suspensos
entre ignorar e saber.
E isso é história: a sombra retorna,
sussurra seu nome em bocas futuras
e mesmo dirá fuit hic: apenas memória?



Jean-Pierre Léaud

Os sapatos se gastam
e nem me dou conta.
Como atar o nó da gravata
ou um beijo sob a umidade
da adega?

Nem mais uma palavra!
Ah, mas vocês gostam de falar!
Não tenho tempo, perdão,
estou indo (onde eu deixei
a chave?)



Os Cientistas
Doubt truth to be a liar

Há alguma corrosão no início
– faz parte de seu ofício;
distribuem, como os padres,
a profilaxia, que não é santa,
mas igualmente certa.

Um silêncio de murmúrio
recobre máquinas e ataduras;
aplicam por critério antecedente
prescrições e vacinas em quem
um dia vai ficar doente.

Como na Lei,
há a vantagem do microscópio,
que é por onde entra o miópico
olho da civilização: macacos gritam,
flores abrem, deuses mortos
cospem sangue verde em gargalhada.

“Nós temos a resposta para o Nada.”


(Dirceu Villa. Icterofagia. São Paulo, Hedra, 2007)




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