quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

"Numa casa de ausências"


TEOLOGIA NEGATIVA

Nas maçãs do mistério um louco
morde a sombra
do sol.

Sob o peso
da solidão
é o meu número.

Hoje a comarca não me compra.

Uso sapatos
de chumbo para o vento
não me roubar.

Mostro a imensa substância
das noites escuras
de San Juan de La Cruz.

Na fuga
do hospício etéreo
a realidade se salva em porta:
arranha-céu.


NOITES ENSOLARADAS

Do poema, romperam-se as romãs.
No coro dos granizos,
fugiram as sibilas.

Íamos habitar a abóbada celeste, 
mas a nave não atravessou
a noite do Hades.

Nossa odisseia era para ser maior
que o mar de Homero.


SOM E FÚRIA

No limite de um mundo
pobre em significados,
solto astronautas
de manicômios
e a estrelografia
tem a consciência
do aço.

O devaneio
é o único
domínio dos fatos.

Sonhamos tanto,
amamos tanto,
mas no final,
calamos as medidas
numa casa de ausências.




HABITUAL

Todos os dias
somos espostejados
como parte
do espetáculo.

A cada palmo
de terra
uma cova de leões

como se os dentes
das feras fossem
a gramática dos ossos
e o Coliseu o melhor
lugar para morar.


O QUE NOS FALTA

Sonora é a solidão, sonoro
o silêncio, sonora
a carne do gueto
e sonora é a boca
em busca de palavras
que se abram em pálpebras.

No efêmero,
onde o eterno
copula com o vazio
e androides deificam a sensação
em bens de consumo,

cabe ao poeta, condenado
à embriaguez do verbo,
fazer alusões à casa
que nos falta.


OCEANO ENTRE AS MÃOS

Para te amar,
gastei os sapatos
como quem pisa
em redemoinhos
sagrados.

Para te amar,
coloquei em pétalas de papoula
o pássaro que emana
da garganta e guardei
a via láctea do teu nome nos estrondos
de um nirvana.

Para te amar,
fiz da saudade uma amiga
de longa data
— aprendi que a vida
é um sonho e há esperas
que sangram.

Para te amar,
domei os meus leões, domestiquei
o medo e não esperei
que a cerveja gelasse.

(Tito Leite é poeta e monge beneditino, e autor de Digitais do caos e Aurora de cedro)



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