sexta-feira, 7 de março de 2014

O sobrevivente


Impossível compor um poema a essa altura da evolução da [humanidade.
Impossível escrever um poema - uma linha que seja - de [verdadeira poesia.

O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.
Há máquinas terrivelmente complicadas para as [necessidades mais simples.

Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.

Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta
muito para atingirmos um nível razoável de
cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.

Os homens não melhoram
e matam-se como percevejos.

Os percevejos heroicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo [dilúvio.

(Desconfio que escrevi um poema.)
 
(Carlos Drummond de Andrade)

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