segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

O perigo de estar lúcida

Rosa Montero descreve muito bem, em O perigo de estar lúcida, algo difícil de pôr em palavras: aquilo que o transforma numa espécie de alienígena de um planeta inabitado, desconectado de qualquer realidade conhecida. Apesar do assunto (a relação entre criação e loucura), seu texto é, em muitas partes, bem-humorado, como só conseguem ser os dos que passaram por graves crises psíquicas. Afinal, como não rir de si mesmo depois de períodos em que não se consegue sair de casa, porque pisar no chão lá fora é pisar num campo literalmente minado? O trecho abaixo toca em dois pontos assustadores da minha própria existência: o medo de perder a sanidade e o medo de que isso se repita. Essas crises atingem mais os artistas (sejam eles bons ou ruins) e, dentre eles, mais os que trabalham com a palavra do que qualquer outro grupo. E a incidência de bipolares é mais alta do que a de apenas depressivos.



“O transtorno psíquico é um súbito e inesperado raio que te fulmina. Sua chegada devastadora tem certa semelhança com os acidentes domésticos graves. Imaginemos, por exemplo, um deslize e uma queda no banheiro que fratura suas costas: um segundo antes, sua vida era normal e vertical, indolor e sequencial, vinha do passado e se projetava em direção ao seu pequeno e próximo futuro (tomar banho, se vestir e ir trabalhar, ou então escovar os dentes e ir para a cama), e, um segundo depois, sem prever nem pensar, você se encontra horizontal e quebrada, atônita, indefesa, dilacerada por uma dor indizível, eliminada da sua vida e da sua realidade por muito tempo, talvez para sempre, se a lesão for importante. Pois bem, é assim que a crise mental se abate sobre você. Parece vir de fora e te sequestra. Na primeira vez, eu me encontrava sozinha na copa de casa. Deviam ser onze horas da noite e eu estava assistindo à televisão sem muito interesse, talvez porque não tivesse vontade de terminar de tirar a mesa, como era minha obrigação. Meu pai devia estar indo dormir; minha mãe, na cozinha; meu irmão mais velho, sabe-se lá onde. Então, aconteceu: a sala começou a se distanciar de mim, o mundo inteiro encolheu e passou para o outro lado de um túnel escuro, como se eu estivesse olhando a realidade através de um telescópio. E junto com a anomalia visual veio o terror, uma onda de pânico indizível, um medo puro e duro de uma intensidade que eu jamais experimentara antes e que, além de tudo, não tinha nenhuma causa aparente. ‘O pior era a sensação de terror constante sem fazer a menor ideia do que eu tinha medo’, diz o psicólogo Andrew Solomon sobre uma depressão que sofreu. Eu também não sabia por que estava assustada, mas me sentia prestes a morrer de susto. Meu corpo tremia com violência e meus dentes batiam e, para piorar as coisas, segundos depois surgiu outro medo, este sim já com motivo: a convicção de estar louca. Afinal, de que outra forma seria possível entender o que estava me acontecendo? (…) A princípio, você acha que nunca mais vai voltar à normalidade, que ficará presa para sempre nessa atormentada dimensão de pesadelo, mas na realidade as crises de pânico duram poucos minutos e depois vão se dissolvendo. Não por completo, evidentemente. Sempre fica o medo do medo (o terror absoluto de voltar a cair no buraco) e uma vaga sensação de apatia e irrealidade que gruda em você como um sudário. Nos piores momentos, você não se atreve a frequentar reuniões sociais, a sair para a rua ou dirigir, com medo de que se repita. Não suporta assistir à televisão ou ir ao cinema, porque a falta de confiabilidade do mundo parece aumentar. Claro, você volta a ter outros ataques, no meu caso cada vez mais espaçados, e ao cabo de um ano ou um ano e meio, mais ou menos, você recupera sua vida. Até o próximo período de trevas.”

 

(Rosa Montero, O perigo de estar lúcida. Trad. Marina Sanchez. Todavia)







 




quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Para além do Nobel

 


Acredito que o Prêmio Nobel de Literatura de 2024 para a escritora coreana Han Kang foi merecido. Mulher, asiática, mas sobretudo autora de uma obra-prima: A vegetariana. Às vezes um único livro curto vale mais que dez calhamaços. Esperava que os críticos de plantão a tivessem lido antes de opinar, para não fazerem o que fizeram com Olga Tokarczuk, autora de outra obra-prima, Sobre os ossos dos mortos, que foi julgada com base nas escolhas de sua vida pessoal. Mas, para demonstrar como Han Kang “escreve mal”, andaram compartilhando um e outro trechinho de seus livros. Trechos soltos, tirados do contexto provavelmente por homens que não leram a obra na íntegra. Isso é o mesmo que pegar 3cm2 de uma pintura de 2 metros do Monet e dizer que nem para pintor de parede ele serve. Penso que muito da recusa que vi a sua obra se deve ao fato de sermos desde sempre expostos majoritariamente à prosa escrita por homens, de modo que a tomamos como medida de boa literatura e estranhamos outras maneiras de narrar. Felizmente, num mundo onde cada vez mais mulheres levantam sua voz, é natural que haja mais gente disposta a escutá-las. Han Kang pode não mudar a história do Nobel, mas pode abrir nossos olhos para autoras como You-Jeong Jeong, Mary Lynn Bracht, Min Jin Lee, Kyung-Sook Shin, Cho Nam-Joo e Frances Cha. Literatura escrita por mulheres, e não aparelhos eletrônicos, é o que de melhor a Coreia tem produzido ultimamente.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Escute as feras

Dois trechos de Escute as feras, da antropóloga francesa Nastassja Martin, que viveu com o povo Even, da Sibéria, e sobreviveu ao ataque de um urso. Tentaram “civilizar” os Even à força, mas muitos, depois da queda do regime soviético, voltaram a viver nas florestas de Tvaian, em busca de reconexão com suas origens:

Não sinto dores de fato. Só sinto medo, medo de tudo aquilo que não voltou a se fechar em mim, de tudo aquilo que potencialmente se insinuou em mim. Há outros seres à espreita na minha memória; então talvez também haja alguns debaixo da minha pele, nos meus ossos. Essa ideia me aterroriza, porque não quero ser um território invadido. Quero fechar minhas fronteiras, expulsar os intrusos, resistir à invasão. Mas talvez eu já esteja sitiada. É sempre a mesma coisa. Diante de pensamentos assim, eu afundo: sei que, para fechar minhas fronteiras, seria preciso antes poder reconstruí-las.

Teria sido tão simples se minha perturbação interior se resumisse a uma problemática familiar não resolvida, ao meu pai morto cedo demais, às expectativas não satisfeitas da minha mãe. Então eu poderia “resolver” minha depressão. Mas não. Meu problema é que meu problema não pertence apenas a mim. Que a melancolia que se exprime no meu corpo vem do mundo. Acredito que sim, é possível se tornar “o vento que sopra através de nós”, como dizia Lowry. E que é comum não voltar atrás, como ele, como tantos outros. Fui ter com os evens do Itcha e vivi na floresta com eles por uma razão bem distante de uma pesquisa comparativa. Entendi uma coisa: o mundo desmorona simultaneamente em todos os lugares, apesar das aparências. O que acontece em Tvaián é que se vive conscientemente em suas ruínas.


(Nastassja Martin, Escute as feras. Trad. Camila Vargas Boldrini e Daniel Lühmann, Editora 34.)


Coletivo Escritoras Asiáticas & Brasileiras

O Coletivo Escritoras Asiáticas & Brasileiras, fundado em agosto de 2023 pelas escritoras Liana Nakamura e Marina Yukawa, é uma iniciativa que reúne autoras asiáticas e descendentes que encontraram na palavra seu lugar de expressão para explorar não apenas o universo individual e particular de cada uma, mas também temas de sua identidade – étnica, cultural e de gênero. O grupo tem por princípio a sororidade e é composto por escritoras de diversas origens asiáticas, contando atualmente com mais de 80 integrantes, de diversas idades e de diversos lugares do Brasil e do exterior.
Procuramos promover a publicação de obras literárias e incentivar ações que deem visibilidade à condição das mulheres asiáticas dedicadas à literatura, acolhendo sua ancestralidade no contexto brasileiro, mas sem os estereótipos que costumam limitá-las. O trabalho das autoras abrange poesia, contos e crônicas, romances, quadrinhos, não ficção, zines e literatura infantil e infanto-juvenil.

Somos mulheres, asiáticas, brasileiras, escritoras. E somos muitas.

Instagram: @escritorasasiaticasbrasileiras 

(logotipo criado por May Aoki Aniya, autora do Coletivo)