(Frida Kahlo, Diego e eu)
Quando Frida era criança, esta casa era branca e vermelha. Uma grande casa de família arruinada. O pai, Guilhermo, fotógrafo nascido na Alemanha, tinha de gastar muito do seu tempo a fazer retratos de famílias para ganhar dinheiro. A mãe, Matilde, foi ensombrando entre os partos, e foram cinco (o único bebé varão morreu).
Mas havia irmãs e amigos, o espírito insolente do grupo de escola, este jardim de árvores tropicais, a rua onde bulia uma intimidade mexicana, indígena, arcaica. Coyoacán foi o mundo de Frida como o Yorkshire foi o mundo de Emily Brontë. E tal como Emily também Frida cresceu a saber o que poucos aprendem: que o amor é o mais forte instinto de sobrevivência, mais forte do que a fome.
Ela não se apaixonou inesperadamente por Diego. Em adolescente ouviu falar naquele Pantagruel tantos anos mais velho, várias vezes casado e separado e pai de filhos, e decidiu que seria ele. Então apareceu-lhe no ateliê, diz a lenda.
As pessoas normais perdem tempo a pensar no que deviam ter feito, e algumas pessoas vêem o que há a fazer como uma pedra. Ser diferente podia ter acabado com Frida, mas ela estava destinada a viver contra todas as previsões. De uma forma um pouco cosmogónica – mas estar aqui ajuda-nos a não ter medo disso –, estava destinada a alterar para sempre o México. Porque Frida Kahlo existiu, o México é mais forte, mais complexo, mais desarmante. Na dor como no riso, ela continua os deuses e portanto é o futuro.
É uma crença antiga, a de que os deuses marcam os seus. Frida tornou-se diferente logo em criança, quando uma poliomielite a deixou com uma perna atrofiada. Frida perna-de-pau, cantavam as crianças. As crianças, todas as crianças, são ajudantes de deuses, marcam os diferentes. Olhem para os retratos de Frida, ela está quase sempre de saia até os pés. Vem daí aquele lema, que não tem nada de ressentimento e tem tudo de vitalidade: defenderse de los cabrones.
E Diego – principio / constructor / mi niño / mi novio / pintor / mi amante / “mi esposo” / mi amigo / mi madre / mi padre / mi hijo / yo / universo – foi esse instinto primordial que a fez levantar o pescoço mesmo depois de 35 operações à coluna, vários abortos, a amputação dos dedos do pé e a seguir da perna.
Talvez, se um deus a marcou, outro lhe tenha dado Diego para que ela encontrasse a cada dia uma razão maior. Se assim foi, Frida Kahlo sobreviveu devido a Diego Rivera, mas Diego existiu para que Frida Kahlo vivesse.
(Alexandra Lucas Coelho, Viva México. Edições
Tinta-da-China, 2010)
Quando Frida era criança, esta casa era branca e vermelha. Uma grande casa de família arruinada. O pai, Guilhermo, fotógrafo nascido na Alemanha, tinha de gastar muito do seu tempo a fazer retratos de famílias para ganhar dinheiro. A mãe, Matilde, foi ensombrando entre os partos, e foram cinco (o único bebé varão morreu).
Mas havia irmãs e amigos, o espírito insolente do grupo de escola, este jardim de árvores tropicais, a rua onde bulia uma intimidade mexicana, indígena, arcaica. Coyoacán foi o mundo de Frida como o Yorkshire foi o mundo de Emily Brontë. E tal como Emily também Frida cresceu a saber o que poucos aprendem: que o amor é o mais forte instinto de sobrevivência, mais forte do que a fome.
Ela não se apaixonou inesperadamente por Diego. Em adolescente ouviu falar naquele Pantagruel tantos anos mais velho, várias vezes casado e separado e pai de filhos, e decidiu que seria ele. Então apareceu-lhe no ateliê, diz a lenda.
As pessoas normais perdem tempo a pensar no que deviam ter feito, e algumas pessoas vêem o que há a fazer como uma pedra. Ser diferente podia ter acabado com Frida, mas ela estava destinada a viver contra todas as previsões. De uma forma um pouco cosmogónica – mas estar aqui ajuda-nos a não ter medo disso –, estava destinada a alterar para sempre o México. Porque Frida Kahlo existiu, o México é mais forte, mais complexo, mais desarmante. Na dor como no riso, ela continua os deuses e portanto é o futuro.
É uma crença antiga, a de que os deuses marcam os seus. Frida tornou-se diferente logo em criança, quando uma poliomielite a deixou com uma perna atrofiada. Frida perna-de-pau, cantavam as crianças. As crianças, todas as crianças, são ajudantes de deuses, marcam os diferentes. Olhem para os retratos de Frida, ela está quase sempre de saia até os pés. Vem daí aquele lema, que não tem nada de ressentimento e tem tudo de vitalidade: defenderse de los cabrones.
E Diego – principio / constructor / mi niño / mi novio / pintor / mi amante / “mi esposo” / mi amigo / mi madre / mi padre / mi hijo / yo / universo – foi esse instinto primordial que a fez levantar o pescoço mesmo depois de 35 operações à coluna, vários abortos, a amputação dos dedos do pé e a seguir da perna.
Talvez, se um deus a marcou, outro lhe tenha dado Diego para que ela encontrasse a cada dia uma razão maior. Se assim foi, Frida Kahlo sobreviveu devido a Diego Rivera, mas Diego existiu para que Frida Kahlo vivesse.
(Alexandra Lucas Coelho, Viva México. Edições
Tinta-da-China, 2010)
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