Sobre o volume organizado por Rinaldo de Fernandes nos cem anos da morte de Machado de Assis, uma crítica favorável de Paulo Paniago, do Correio Braziliense, ao meu conto "A outra causa", inspirado em "A causa secreta":
No centenário da morte do autor de "Dom Casmurro", três antologias aceitam o risco de produzir releituras da obra do escritor
Paulo Paniago
“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”, diz Brás Cubas ao final do romance machadiano. O mesmo não se pode dizer de Machado de Assis, que teve filhos, netos e bisnetos literários, até hoje por aí, a provocar estragos e aumentar o legado do gênio, às vezes com homenagens, nem sempre com glórias.
Não tinha como, no centenário da morte de Machado de Assis, a data passar em branco. Comemorações, rapapés, é de se imaginar como Machado receberia toda a pompa e circunstância que se faz a seu respeito, mas parece que ele apreciaria. Por exemplo, três livros fazem exatamente o projeto de recriar os contos de Machado de Assis por escritores contemporâneos. Organizado por Luiz Antonio Aguiar, um deles se chama “Recontando Machado”. Para cada conto (ou dois), um autor procura ou bem atualizar, ou mesmo reinterpretar a partir do mote original. O outro livro chama-se Capitu mandou flores, foi organizado por Rinaldo de Fernandes e tem escritores que reinterpretam dez contos de Machado, além de trazer autores que procuram ficcionalizar trechos e situações do romance Dom Casmurro. Ao saldo, acrescente-se a inclusão de cinco ensaios. O terceiro é “Um homem célebre – Machado recriado”, com contos, desenhos e uma peça, publicado pela Publifolha.
As opções dos organizadores são distintas, os resultados nem tanto. Em “Recontando Machado”, para cada conto de Machado somente um escritor reelabora um conto (em três ocasiões distintas, os contos machadianos, em vez de solitários, somam dois). O texto machadiano é colocado depois do conto, o que pode levar o leitor, em alguma situações, a querer inverter a leitura: começar por Machado, depois ler a interpretação atual. Um dos que se sai melhor na tarefa é Alberto Mussa, que juntou os contos A cartomante e A causa secreta, para fazer um conto inventivo chamado A leitura secreta. Outros ficam apenas na atualização respeitosa, ou seja, na homenagem mais óbvia, ou na variante só levemente criativa, o que não ajuda. No caso de “Capitu mandou flores”, mais de um intérprete é convocado a fazer a tentativa de reconstrução de somente um conto de Machado, que sempre antecede as recriações. Uma delas consegue ser realmente original: Leila Guenther descobre uma maneira engenhosa ao extremo para reler o conto A causa secreta, um dos contos de Machado menos característicos. A releitura é original porque mostra um caminho de fato alternativo: o que aconteceria se a cena vista pelo personagem Fortunato fosse na verdade outra coisa que não aquilo que Machado sugere? A resposta de Guenther é bastante criativa e seria aplaudida, imagina-se, pelo próprio Machado, que forjou narrativa sombria a respeito do prazer humano retirado do sofrimento alheio.
Em outros pontos, como acontece com a reinterpretação de Cecília Prada para o conto Noite de almirante, está clara a eficácia técnica da escritora, mas talvez persista o erro de avaliação acerca de até onde estender a narrativa. O que era sugestão e possibilidade em Machado torna-se francamente explícito em Prada. Embora o conto talvez funcionasse por si, ao ser colocado em perspectiva junto da obra machadiana revela deslizes nas escolhas. Machado narra a história de uma promessa de fidelidade eterna forjada num momento de paixão entre um marinheiro, Deolindo Venta-Grande (apelido de bordo) e a cabocla Genoveva, pouco antes de ele embarcar para uma viagem longa, de dez meses. Quando volta e a procura, ela está com outro. Eles conversam a respeito do que houve. Houve que as coisas mudam. Ele volta para a embarcação e os amigos lhe perguntam se teve a noite de almirante, se Genoveva está bonita etc. “Parece que teve vergonha da realidade e preferiu mentir”, conclui Machado. Na história de Cecília, há também um almirante, mesmo, o almirante que comanda a corveta onde está o marinheiro Deolindo. O almirante também desce da embarcação, vai à casa onde tem esposa, Maria Amália, relembra que a mulher que tanto amava um dia lhe declarou que o filho deles, o caçula, não era filho dele. Bebe, sai, armado de pistola e sabe-se lá que decisão, encontra-se com um Deolindo armado de faca e ressentimento após o encontro revelador, e quando se esbarram um no outro é para provocar mais que desencontro.
Entre tudo e tudo, o leitor ficará com a sensação de que Machado não é para ser recontado e que será bem feito para editores, organizadores e autores se essas obras não tiverem muita repercussão além de uma resenha aqui, uma crítica acolá. Entretanto, é importante assinalar que os ensaios, sim, ao final de “Capitu mandou flores”, continuam a ser o gênero correto com que se deve abordar a obra machadiana.
Alberto Mussa é também um dos que se sai melhor em “Um homem célebre”. O princípio de composição, de se fazer passar por um pesquisador que descobre uns papéis numa biblioteca e com isso prova que a história de “Dom Casmurro” é verdadeira (mas que também apresenta uma perspectiva inovadora) é interessante e bem articulado. Nesse livro, no entanto, o conto ou romance original não está presente e resta ao leitor recorrer, quando julgar o caso, ao original machadiano. Outro que consegue uma abordagem literária eficiente é Cristovão Tezza, que recria um episódio de “Quincas Borba”. Mas alguns se saem bem mal na tarefa, caso do conto Vigília, de Carola Saavedra, baseado em Uns braços. O que em Machado é sugestão e rapidez, em Carola se arrasta e entendia, a pretexto de se tornar, por assim dizer, poético. A missa negra que Lourenço Mutarelli produz a partir de Memórias póstumas é estranha, não exatamente fora dos eixos, mas incômoda.
Isso, para não dizer coisa mais terrível na escala mais ampla. Por exemplo, que continua a faltar escritor nacional que enfrente a dimensão de Machado e o supere na briga literária, chacoalhando de vez o cânone. Se (enquanto) isso não for possível, corre-se o risco de se continuar a repisar o gênio machadiano e ver a literatura mais e mais escorrer pelo ralo da indiferença de leitores. Escritores brasileiros precisam parar de ser aprendizes de bruxo e começar as grandes mágicas.
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